De cócoras observo meu jardim. Borboletas voam sobre as flores. Uma tem preta a moldura das asas e todo o cento é verde néon. Nunca tinha visto uma assim.
Do alto das árvores sou observado pelas aves e elas me reconhecem pelo que sou - árvore - e em mim fazem ninhos.
De um ninho em mim um pássaro me pergunta:
- O que você escreve, Benito? Sobre o quê?
- Através das palavras faço retratos de rostos e da cidade. Busco ligar-me a quem e ao que vejo.
- E como você os desenha?
- Do jeito que são aos meus olhos; mas só após muito pensar, pesquisar, analisar, filosofar.
- O que você tem visto e ouvido?
- Olhar e escutar são muitas as coisas, mas para ver dou preferência aos olhos das pessoas; para ouvir prefiro o vento nos meus galhos, aos cantos e pensamentos pássaros, e a voz de quem sabe o que tem a dizer.
- Quem você tem ouvido, o que tem refletido?
- Belo pássaro de linda voz que ecoa triste no meu cérebro. O que me atormenta estes dias é:
- Adolf Eichmann foi o burocrata alemão responsável pela prisão e morte de milhões de Judeus. Com o fim do nazismo fugiu para a Argentina e lá trabalhou numa fábrica por quinze anos até ser descoberto em 1960.
Fecho os olhos para reter a vontade de beber.
- A filósofa Hannah Arendt após ler as milhares de páginas do processo - acusação e defesa - de Eichmann descobriu algo desconhecido sobre a psique humana. A Banalidade do Mal.
- O mal pode ser banal, Benito?
- Ah, pássaro! A humanidade pode tanto... Veja:
- Eichmann era um homem comum. Respeitava a esposa, acompanhava os estudos dos filhos; um bom cidadão. Então como ele pode ser um burocrata nazista? Para isso vamos entender a teoria filosófica A Banalidade do Mal:
"O pior mal é cometido pelo cidadão comum que perdeu ou não desenvolveu a capacidade de análise crítica, de dizer não, de indignar-se perante a falta de ética do sistema onde a maldade é difundida de todas as formas e por todos os lados. Fazendo esse cidadão tornar-se um monstro sem se dar conta disso nem dos absurdos do sistema".
O vento baila as árvores e me toca num consolo.
- Pássaro, Eichmann morreu acreditando-se inocente por ser apenas uma peça do sistema e que os verdadeiros criminosos eram os governantes. Isso é a banalização do mal. A incapacidade dos malfeitores em perceber a gravidade de seus atos. E a descoberta de Arendt promoveu nas universidades a importância não só de passar conhecimentos, mas também ensinar a análise crítica dos discursos e a valorizar a diversidade e pluralidade de ideias.
Após dizer isso, ouço, não do pássaro, mas de muita gente no mundo:
- Não digo que ele não sabia o que fazia. O problema da teoria é afirmar que ele não se sentia responsável pelos resultados. Isso foi apenas uma estratégia defensiva. Se ele não se sentisse responsável, não teria fugido para a Argentina, vivendo como um desconhecido e com falsa identidade. Mais esperto foi Albert Speer em Nuremberg, o qual evitou não só ser condenado à morte, como ser condenado à prisão perpétua...
- Gente, seu ponto de vista é muito relevante para um bom diálogo.
- Obrigado!
- Algo banal é algo corriqueiro. - Argumento. - No período escravagista as pessoas não percebiam que aquilo era mal, pois era o normal. Se fossem ameaçados de serem presos iriam fugir por medo da prisão e não por perceberem o mal que fizeram. Essa é a questão. - Silencio-me para ouvir o vento e as aves que têm mais a dizer do que a maioria das pessoas. Depois continuo: Quando eu era criança... Hoje tenho cinquenta e três anos... eram comuns "piadas/brincadeiras" racistas e homofóbicas e isso aprendíamos com os adultos que aprenderam quando meninos. Não percebíamos como males nem que eram preconceitos. - Engulo minha vergonha e confesso:
- Há também o medo como condutor. Sou membro da comunidade LGBTQI+ nunca época que, muito mais que hoje, perseguia pessoas como eu. Por isso tentei muito ser o que não era. Fiz piadas homofóbicas para dissimular. Fingir interesse por mulheres. Pisoteei meu ser. O medo me fez mentir sobre mim, agredir verbalmente pessoas audaciosas, enganar mulheres ao fazê-las acreditar que as queria num relacionamento hétero.
Outros pássaros que acompanham a conversa cantam tão docemente que deixo sair uma lágrima libertadora antes de continuar.
- Foram três décadas horríveis a me fazer um homem horrível. E por quê? Porque o racismo e a homofobia eram males banalizados. Ou, você Gente, crê que eu não sofria pressão e agressão social e religiosa em casa, na vizinhança, na escola etc.?
- Seria sorte, escolha, possibilidade, acesso? Não discutirei isso; não agora. Mas como gosto de estudar e tive a sorte de conviver com artistas e intelectuais fui observando o mal que ignorava e aí sim fui capaz de refletir e mudar de comportamento.
- Qual é sua postura hoje? - Pergunta o pássaro no ninho em mim.
- Minha postura é: Sou o que sou. Não quer ver pessoas como eu? Então que fique cego. Duro, não? Mas é fato. Eu e meus semelhantes estamos aqui para não banalizar o mal.
Mas Gente parece não entender. Por isso continuo a dizer ao pássaro e se alguma gente puder e quiser entender, que compreenda. Caso contrário, lamento.
- Pássaro, não sou negro, mas qualquer desrespeito aos negros me afeta porque somos humanos. Não sou mulher, mas qualquer desrespeito às mulheres me afeta porque somos humanos. Não sou gordo, não tenho deficiência física ou intelectual, não sou da Umbanda, nem do Candomblé, nem sou judeu, ou cristão, ou muçulmano ou ateu. Mas qualquer agressão a essas é outras pessoas/comunidades me afeta porque somos humanos.
- Pássaro, não estou só no mundo, mas sou só. É claro, têm muitas pessoas que gosto e algumas eu amo. Talvez haja quem me ame, mas é certo que alguns gostam de mim.
Ao íntimo ninguém adentra.
Num silêncio só ouvido pelo pássaro no ninho na árvore que sou analiso uma boa conversa tida com o máximo minecontista Girvany de Morais, pois amigos e escritores somos nós dois.
Disse ele a Benito para depois escutar:
- No meu velório, que, creio, vai demorar, quero uma multidão.
- Não quero velório. Não quero ninguém acompanhando. Quero ir direto pra sepultura.
Benito morreu primeiro. Muito depois foi a vez do outro.
Primeiro falemos do velório do último.
Cem pessoas ou mais.
Quinze sofreram a perda. Vinte e cinco choraram arrependidas pelas mágoas sofridas, pelas provocadas e pelas mágoas mútuas. Dez disfarçaram os antegosos com pesadas lágrimas. A outra metade pouco sentia; fosse bom ou fosse mau. Uma lágrima aqui e ali; pouco sentidas. E muitos causos e piadas durante o féretro.
Enterro do primeiro:
Sem pessoas.
Ninguém sofrendo amargas lágrimas. Ninguém antegozando com lágrimas de crocodilo. Ninguém contando causos e piadas. Ninguém com falsas lagrimas.
Paz.
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Rubem Leite.
Parte da Inspiração de meu cronto veio de um texto de Joel Paviotti. A página dele no Caralivro se chama Iconografia da História.
O conteúdo do meu cronto é ficcional, mas como toda boa mentira tem sua base na verdade. O texto tem sido pensado desde o outubro passado, mas escrito entre os dias 27 a 30 de janeiro de 2022 e postado neste último dia.
2 comentários:
Sentimentos de pedra. Humanidade solúvel. Rios de lágrimas e soluços. Se o soltamos todos os errados, ou se mantemos presos os justos, não há mais uma necessidade de ser cidadão. Apenas de prevalecer e impor, dada força ou fé, uma vontade sobre a outra. Mas, o quê isso importa? Muitos arrotam que se temos onde morar, o que comer e o que fazer para conseguir dinheiro, nada mais importa. Apenas ignorâncias e indiferenças. Lembro-me de quando alguém mais magro zombava da minha obesidade. São essas coisas que sofremos que dão oportunidade pra resistirmos. E no mais, apenas se trata de algo visível e perecível, como a beleza. A verdadeira essência humana não está nas formas: está nas atitudes! Sejamos melhor após errar. Aceitemos que erraram antes de nós no jogo do poder. Aceitemos o passado e lutemos no presente por algum futuro!
Haverão de existir princípios éticos absolutos, e eles, certamente, remeterão a uma regra: não fazer a meu próximo aquilo que não gostaria de que fosse feito comigo. Tal regra encontra-se em todas as culturas. O carrasco nazista mencionado no conto certamente não gostaria de sofrer aquilo que sofreram, nas suas mãos, as suas vítimas. Ele, ao infligir dor em seus semelhantes, passava por cima da regra mencionada, pois não gostaria de que alguém lhe infligisse dor. Tinha consciência disso. É a partir de tal regra que a dor do outro diz respeito a mim, humano que sou. E ser agente transformador de uma realidade desumana é papel de todos os que se querem verdadeiramente humanos.
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