domingo, 13 de novembro de 2022

A-LUNOS SEM LUZ

Ou A VOZ DO PROFESSOR SEM VOZ


Alunos e seus

Olhos seletivos.

Conseguem ver no celular

Mas não os livros.


Jesus é outra coisa. Jesus é coisa séria.

As Igrejas de extrema direita clamam é por Zejus.


Metade de novembro e a turma encheu-se dos que ainda não alcançaram média.

_ Bom dia.

Começa a aula enfrentando, afônico, o ruído da sala.

_ O ser humano pertence a que reino? Animal, vegetal, mineral ou é uma espécie à parte?

Ninguém responde.

_ Vamos, gente! ... Somos da espécie animal...

_ Não sou animal não.

Protesta uma das faladeiras caladas para responder.

_ Então é o quê? Pedra!?! Planta!?!

_ Num sei. Mas num sô bicho.

_ A palavra animal vem de "anima" que significa energia que dá movimento a tudo que vive. Somos capazes de transformar energia em algo que nos permite continuar vivos, a reproduzir e a locomover.

_ Num importa. Num sô bicho. A Bíblia diz...

Preferindo não entrar numa discussão infrutífera continua sua aula. Mas se sente triste por um ambiente acadêmico estar infectado por "convicção, não por provas".

_ A diferença entre nossa espécie e demais seres vivos é o poder de raciocinar, filosofar e de expressar...

_ A gente num é animal não. - Teima no assunto.

_ Apesar do poder de refletir muitos preferem sequer pensar. - Calculando o rebate: CONTUDO, para nos comunicarmos foi necessário adaptar diversas partes do corpo com outras funções primárias, indo do diafragma, pouco acima do genital, até o topo do crânio. E...

_ E o que isso tem com Português?

Interrompe outro aluno e um terceiro acrescenta:

_ Não gosto quando fala contra Deus.

_ Português é comunicação e para comunicar é importante saber como produzimos palavras, ideias. Seja no nível biológico seja no nível filosófico.

Olhando a turma por dois, três segundos retoma a fala antes que no lugar de ouvirem para compreender, ouçam para responder:

_ Nunca falo contra Deus. Creio e respeito Deus. Não me importo como chamem a Grande Vida ou o Criador. Respeito sempre. O que sempre falei e falarei é contra o preconceito, contra a ignorância. Discuto sobre os religiosos cheios da presunção: "superioridade da minha crença". Critico os traficantes ou mercadores da fé. Nenhuma religião é superior a outra e todas devem ser respeitadas, mesmo se não praticadas.

E retoma, com sua afonia cada vez pior, a falar para ouvidos moucos sobre compreensão e transmissão dos discursos: o que estão me falando? como melhor expressarei minhas ideias.

_ Ah, professor! Para de falar e conte uma história como fazia antes.

Sem ter quem ouça fala para os que apenas escutam:

_ Em uma enchente, um devoto subiu no telhado de sua casa e pediu socorro a Deus. Apareceu uma canoa e o fiel a recusou dizendo "Deus vai me salvar". Veio um barco e não aceitou o socorro. "Deus vai me salvar". Surgiu uma lancha e outra vez recusou a ajuda. "Deus vai me salvar". Por fim, um helicóptero e... "Deus vai me salvar".

A enchente cobriu a casa e o homem se afogou. No Céu:

_ Por que não me salvou, Senhor?

_ Mandei quatro pessoas e você recusou todos os socorros que enviei.

Finalmente bate o sinal. Encaminha-se para a sala dos professores, mas para um instante na biblioteca escolar, escolhe um livro e observa o grafite de Rafa Mattos.

Depois, mais duas aulas antes de enfrentar o complicado, trabalhoso e ruim "diário on-line" adquirido pela prefeitura.


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Texto de Rubem Leite.

Foto do autor: biblioteca escolar Rubem Alves, E.M. Limoeiro, Timóteo MG.

GONTIJO, Bernardo. Por que nós somos animais. Disponível https://www.universidadedascriancas.fae.ufmg.br/perguntas/por-que-nos-somos-animais/ . 13 Nov 2022.

Pensado e escrito entre os dias 08 e 13 de novembro de 2022.

Um comentário:

Josiane Hungria disse...

Infelizmente nos deparamo-nos com essa situação da crença sobre a ciência todo santo dia. Cansativo ter que lidar com isso em pleno século XXI.