Quando eu o encontrei ele já estava morto havia alguns dias. Dois abutres dilaceravam os buracos de seus olhos. Perto de sua mão esquerda, uma lata de cerveja vazia. Ele estava sem sapatos, os dedos dos pés esfolados, a testa destruída e o que restara de sua camisa era apenas um trapo manchado de sangue, deixando a mostra um buraco grande o suficiente para passar uma garrafa de Coca-Cola de duzentos e noventa mililitros. Dei dois tiros para o alto e os urubus levantaram vôo, fazendo alarde.
Peguei o cantil e tomei um bom gole de água, antes de me abaixar e arrancar a identificação presa ao pescoço do cadáver de meu ex-colega. Ao levantar a cabeça, dei conta da imensidão do cenário - amplo, como o de uma tela de cinema. Só que eu estava dentro do filme. E havia o silêncio, aquele silêncio avassalador:
Eu estava no deserto.
No deserto você descobre o quanto é frágil a vida humana. Todos aqueles carrões varando avenidas desertas não servem para nada no deserto. No deserto não há ruas nem semáforos, não há prédios, não há bueiros fedorentos, não há trombadinhas, traficantes, bacharéis, doutores e nem políticos ladrões e nem restos de embalagem de batatinha lançados pelos chifrudos de seus carros em movimento. No deserto tudo o que você precisa é de uma cueca limpa a cada meia hora, comida, água para beber e um belo banho, e na primeira oportunidade que pintar você aproveita para dar o fora pra bem longe daquela churrascaria de carne humana. No deserto nenhum prefeito da cidade mais limpa do planeta conseguiria manter a cidade tão limpa quanto as ruas invisíveis desta imensidão de areia branca que é a porra do deserto. Puta que pariu!
Areia. A cada ponto gráfico lançado neste papel corresponde um grão de areia no deserto. Se este conto fosse um deserto nada seria escrito e esta página em branco estaria coberta de pontos brancos. Pontos de areia. Isto é o deserto. Um homem perdido no deserto, a pé e sem água, pode crer, é um baita fodido. No deserto não existe o fora e nem o dentro, tudo caminha para a sequidão. Os americanos pisaram na lua e tudo o que eles trouxeram de lá foi areia. E nem um copo de água.
E tem o sol escaldante martelando em sua cabeça. Alucinações. Garganta seca. Sede. Cerveja. Está provado: sob o calor infernal do deserto é o melhor lugar do mundo para se tomar a mais gelada cerveja. E você nem pensa em mulher. Não importa a marca. E onde tem cerveja tem mulher. Mas não se vê viva alma em um raio de duzentos quilômetros. Um comercial de cerveja sem mulher. Por que não pensamos nisto antes?
Daqui de cima, da janela do bimotor, o deserto assemelha-se à pele leitosa de uma mulher. Melhor, de centenas de mulheres, todas deitadas, nuas sob o sol abrasador - o deserto é como se fosse uma cama imensa forrada com alvos lençóis – os corpos delas misturados, braços, pernas coxas e nádegas em um bacanal tórrido. Uma visão fascinante.
As dunas que se movem, voluptuosas, são como os seios destas mulheres; a espinha dorsal de uma delas serpenteia de um extremo a outro do colchão de areia, afunilando-se no horizonte e se enroscando nas coxas bem torneadas de outra mulher, tão branca e sinuosa quanto a primeira e que ainda há pouco a vista não descortinava. E há as grutas secretas, bundas lisas feito gelatinas, e fendas que se abrem no leito de areia, traiçoeiras, prontas para sugar a seiva do seu pau até a raiz do saco e o que mais restar de líquido no corpo do viajante.
Volto os olhos para o interior do avião e vejo o que sobrou de você, envolto em um plástico preto. O fedor que exala de seu corpo me provoca enjôo e uma puta dor de cabeça. Tomo um dramim com uma boa talagada de Jack Daniels e adormeço.
A sede. A garganta arde como um caldeirão de agulhas na aciaria do capeta. Melhor economizar saliva. Falar pouco. Mas você está sozinho e não tem com quem conversar. O vento não responde. Sete, oito, doze horas atravessando o deserto, os pés cheios de bolhas, não há mais água no cantil, e para comer resta-lhe apenas uma barra de cereal. Daqui de baixo, com os pés metidos na areia, arrastando-se com dificuldade, o sol queimando a pele de seu rosto, a visão turva, as mulheres não lhe parecem nada convidativas.
Até que você avista o que lhe parece ser uma pequena cidade e se pergunta "que maluco iria se enfurnar neste lugar". Meia dúzia de casebres de madeira, uma pequena torre de igreja e alguns coqueiros ao leste completam o conjunto. Um aglomerado urbano. De tudo o que você já ouvira falar sobre o deserto nada se compara com o que você veria dentro de alguns minutos.
Você entra na cidade, caminhando pela rua principal, a única rua da cidade, onde, talvez, algum dia tenha sido um acampamento de mineiros. Ou o alojamento de uma empresa petrolífera. Bolas de arbusto assopradas pelo vento batem em suas pernas. Se você pelo menos tivesse um cigarro, poderia entrar em grande estilo. Mas o cigarro foi banido do mundo da publicidade. É possível que você esteja sendo observado. Da torre da igreja, na parte central da cidade, você seria o alvo perfeito para um atirador com uma Winchester 22. Mas não parece haver ninguém por aqui. A sua sede é maior do que o seu medo e você não vai desistir agora. Procura algum poço, algum sinal de água, uma geladeira. Melhor seria se encontrasse uma máquina de Coca-Cola. Um sorriso fadigado ameaça abrir uma risca em seus lábios queimados, colados pelas feridas.
Você se lembra dos colegas da agência. Os figurões do marketing banalizaram a propaganda. Tudo parecia perdido, a empresa naufragava, os contratos minguavam. Até que os mágicos tiveram a idéia infeliz de lançar este Rally no Deserto, patrocinado por uma marca de cerveja vagabunda.
A COISA COMEÇOU COM A LEI SECA, quando o governo federal proibiu os motoristas de dirigirem alcoolizados. Daí, até vetar a propaganda de cerveja na TV, foi como um pequeno trago para um alcoólatra. Em breve, você veria o fundo do poço. E ele estava seco.
Se as pessoas não podem beber e fazer o que lhes der na telha, inclusive pegar o carro que lhes pertence e sair por aí, curtindo a vida, como dizem - qual o sentido de encher a caveira de cerveja e ainda ter que passar pelo vexame de ser multado, ir em cana e perder a carteira? De que vale o seu diploma? Para isto existem os advogados.
Um dia ouvi do Presidente das Organizações Globo: "Não existiria imprensa livre se não fosse a publicidade." Imprensa livre. Conta outra. "Quem quiser ter opinião, que compre um jornal", já dizia o Tio Patinhas da Notícia, o fundador dos Diários Associados. Os jornalistas não passam de publicitários da notícia, são pagos pra escrever ou falar o que convém ao patrão-anunciante.
Deixe Deus fora disto. O seu diploma pregado na parede não poderá salvá-lo agora.
Havia uma competição acirrada entre nós, um sentimento de inveja afetiva contra o colega que conseguia criar a ilusão mais duradoura na mente do consumidor, com mais originalidade, sem apelar para a canastrice barata de ocultar a mentira. O consumidor paga para ser enganado. Ora, a publicidade simplesmente não nos preparou para enfrentarmos a tragédia contida em um copo de verdade. Cerveja? De fato existiam aquelas louras gostosas, coxudas e de bumbum arrebitado que posavam sorridentes ao lado de uma garrafa de cerveja em troca de um cachê milionário, mas elas não eram ninfomaníacas - peitudas sim, seminuas sim -, e de vez em quando uma delas dava pra gente, desde que vissem nisto uma boa chance de subir na vida. E isto não é mentira. É propaganda. No jogo das cotas publicitárias valia de tudo. Contratos de fachada, políticos corruptos, artistas de televisão, jogadores de futebol, cantores de duplas sertanejas, pagodeiros, funqueiros de uma só música, velhos safados, gente louca pra se dar bem - ficou evidente o estágio doentio de nossa sociedade – a nata, dançando, rebolando e ministrando aulas para os adolescentes de como encher a cara desde os doze anos de idade. Parece que ninguém queria enxergar o óbvio.
Do faturamento da agência, oitenta por cento vinha da publicidade de duas marcas de cerveja famosas. Fizemos congressos, promovemos shows, corrompemos e aliciamos políticos, pagamos propina para a polícia, bancamos seminários nos melhores hotéis para advogados, juízes, desembargadores e ministros discutirem o direito de ir e vir do cidadão (bêbado ou sóbrio, dirigindo ou não, em nome dos direitos fundamentais, ninguém está obrigado a fazer prova contra si próprio e por aí vai).
De nada adiantou. A desgraçada da lei pegou.
Agora, tiro o chapéu da cabeça e passo a mão pela nuca suada, enquanto meus olhos procuram, desesperados, de um canto ao outro desta maldita cidade fantasma, indícios de água. Com os olhos queimados pelo reflexo do sol na areia, a mente inquieta, efeito da insolação, em retrospecto consigo compreender minha vida profissional com uma clareza cristalina, e sou capaz de visualizar o perfeito idiota que eu fui desde o primeiro dia em que entrei para a agência. Como eu vim parar nesta roubada? Foi então que eu ouvi um barulho, como se fosse um trovão, um batido de tambor, que para mim soou como um tiro disparado para o alto. Um tiro de advertência. Sem pensar, reuni forças e corri e entrei no primeiro abrigo ao meu alcance, onde uma placa de madeira corroída pelo vento árido do deserto balançava: "BAR DA SAIDEIRA".
JT PALHARES
Jtpalhares@gmail.com
2 comentários:
Oi, rubem, gustei d+. O Palhares é um amigo? ou e vc?
O texto é bom d+
Rubens,
grato pelo espaço!
Carlos H. Peixoto
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