Rubem Leite – 21-9-08
arterubemleite@gmail.com
“Não tomo bolinhas. Quero estar alerta, e por mim mesma. Fui convidada para uma festa onde na certa tomavam bolinha e fumavam maconha. Mas minha alerteza me é mais preciosa”.
(Clarice Lispector – A Descoberta do Mundo – Editora Rocco)
Acabo de sair de casa e me deparo com o pé do morro. Olho para seu tamanho e só vejo uma enorme mancha marrom. Começo a subir seus degraus. Denúncia da interferência humana. No fim da escadaria me deparo com uma árvore emplacada com a inscrição:
“... Árvore da vida! Árvore da esperança ... Visão da escada de Jacó”
Paro. Olho ao redor. Sigo.
A subida está mais íngreme. Vejo uma árvore escorrendo resina. Resignado eu oro. Até a hora de ir embora.
A subida não para. Eu escorrego caindo de joelhos. De joelho eu rezo ouvindo os gemidos das árvores fazendo amor com o vento. Continuo a subida e vejo uma linda mulher. Os mais lindos cabelos negros. Como uma noite estrelada. Paro calado. Seu olhar me faz falar. Duas luas vieram e se foram. Assim nos conhecemos. Na terceira lua nos amamos feito o vento fazendo a árvore gemer. Na quarta lua nos separamos. Volto a subir.
Cinco sóis causticantes me matavam até eu ver os restos humanos de alguém. Um ninguém. Paro medroso. Examino ou viajo? Examino.
Vespas fizeram morada nos restos. Descobri ao mexer cauteloso. Reponho com cuidado os restos à posição que estava e saio correndo. Caio sentado. Volto a correr e caio com o rosto noutra escada escavada. Desmaio.
Desperto na escuridão. É uma casa, acho. Por uma fresta vejo luz. Nada esperto vou até a luz e vejo meu salvador. Forte. Ele me olha sério e em silêncio me aponta uma cadeira à mesa. Ele se levanta enquanto eu me encaminho ao lugar indicado, põe comida num prato e me dá. Como em silêncio. Ele olha pela janela. Em silêncio nos olhamos até sua voz. Grave. Dizer seu nome. Tento falar o meu, mas não me recordo. Perdi meu nome na escalada.
Olho sua pequena casa. Um quarto e a sala-cozinha, onde estamos. Livros. Somente livros emoldurando a porta pela qual entrei e na parede que lhe faz quina à esquerda. Armas em uma parede e na última que olho, vejo o fogão e a porta para fora.
- Posso pegar um livro?
- Pode.
Vou às estantes e demoro a escolher. Pego um de Caio Fernando Abreu.
- Leia para mim. Diz ele e atendo o seu pedido. Uma hora. Duas horas até nos cansarmos.
- Vou dormir.
- Benito.
Ele me olha.
- Lembrei meu nome. É Benito.
- Venha deitar, Benito.
E não dormimos por três luas. E não vimos três sóis. E no quarto sol, após a noite de lua, fui embora com um farnel montado por ele mais dois livros de Clarice Lispector.
Vou morro acima. Terra arenosa. Eucaliptos. Um ipê.
A subida não para até encontrar um pentagrama de troncos caídos de onde escuto um anjo profetizar a vinda do Messias.
- Ele vem com um sorriso de grandes dentes amarelos. Um chapéu na cabeça e um livro preto nas mãos. Vem montado num grande cavalo azul. Suas palavras são de promessas, promessas e mais promessas. Deixa o homem trabalhar. Conclui o anjo.
- Fuja do cavaleiro com a bandeira vermelha no cavalo preto e branco. Ele é o adversário do grande Messias velho. Diz outra voz no pentagrama.
Vou embora. O grande Messias de chapéu me assusta. Vou embora morro acima.
E vejo a grande cidade.
- Vou até ela na estrada poeirenta?
Decido seguir a trilha que já estou e ver onde vai dar. Descubro uma bifurcação.
- Sigo a estreita estrada poeirenta? Ou sigo a larga estrada cheia de pedras?
Sigo a estrada empedrada.
- Ai!
Foi um pedaço da carne de meu pé cortada por uma formiga cabeçuda monstruosa. E só vejo mais e mais formigas se aproximando. As encaro pensando no que fazer. Esmago umas e outras.
- Ai!
Esmago mais outras. Mas o que fazer? Correr é a única coisa que penso e faço. Milhares de formigas avançam até mim. Vez ou outra mais um grito até me deparar com um mar de terra, por onde elas não avançam e eu me perco.
Ouço um canto. O canto de invisíveis sereias aladas. E me sinto voando sobre a imensidão. Sinto orgasmos não sei como nem pelo que provocado. Só podem ser as sereias que anuviam meus sentidos.
Acordo muito longe de onde estava e cinco seres indefinidos lutam comigo até jorrar o líquido da vida que se perde pelo meu peito até o chão. Desfaleço. Após cansá-los com minha persistência eu me desfaleço. Quando acordo, corro dali até me chocar com um gigante amarrado que me ameaça. Suas mãos estão livres e tentam me pegar. No desespero tropeço na alavanca que prende as correntes que lhe detém e o imobilizo com dor.
Quero soltá-lo. Resisto à vontade.
- Talvez seja melhor um gigante acorrentado...
- Seu tolo. É melhor deixá-lo livre.
- Sei não. Pelo menos é o que sempre me disseram. Ele é ruim. Perigoso. Não merece estar solto.
- Ao menos volte aqui às vezes e afrouxe as correntes.
A subida pelo morro é um semi-círculo e me deixa bem diferente de como saí. Bem distante de onde parti. Acaba num nada que é tudo. E de lá volto para casa completando o percurso.
Chego ao meu lar com o canto do galo.
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Falando sério! Você acha que depois de uma viagem assim eu preciso de algum alucinógeno? Não! E eu concordo com Clarice, minha alerteza me é mais preciosa. Permite-me ver ao redor para melhor descrever através de minhas artes. Inté!
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