segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

CASA VERDE


Larôyê Exu! Exu é Mojubá! A vós, Mensageiro Exu, meus respeitos! Eu te peço, Exu:
Mensageiro dos Orixás e do próprio Olorum, proteja-me da inveja e do olho gordo; mantenha meus caminhos abertos no amor e nas finanças; oriente minhas palavras escritas e faladas. Larôiê Exu! A vós, Santo Antônio, meus respeitos!
“Pode até não ser uma janela aberta para o mundo, mas certamente é um periscópio sobre o oceano social.    (Ambujanra)

Levantou-se da cama e não haviam paredes que o guardassem.
Mas o que é guardar um homem? Seria guardá-lo dos perigos ou ele era o perigo.
O céu branco de nuvens parecia indicar estiagem por mais do que minutos ou poucas horas.
Caminhou pelo jardim nublado.
Ao passar entre dois troncos cujos galhos formavam uma porta, entrou numa escadaria e assumiu o seu lugar para escutar o amigo que lhe falava:
- Ahh véi, adianta falar nada com ele não, melhor deixar isso quieto que evita problema, cê não é do meu sangue, mas cê é mais que irmão pra mim e se sujar pr’ocê acaba sujando pra mim também. Deixa essa porra pra lá… – Lucas dizia com ar de preocupação, enquanto descia as escadas devagar.
No pé da escada Diego chega sozinho a uma loja. Um mercadinho, na verdade. Duas mulheres falavam em inglês com o dono sem que este as entendera.
Demorou, mas o sujeito acabou entendendo. Queriam um pacotinho com tirinhas de salgadinho. O protagonista pegou uma faca e pagou-a. Atravessou a porta dos fundos para chegar ao pé da escada.
- Esse ficou show… – Diego disse ao examinar o baseado, mais para o contentamento de Lucas do que por verdadeira apreciação de sua arte. – Lei do Duende, quem bola acende. – Recitou o ditado com um sorriso enquanto levava a boca o cigarro recém nascido.
O escadão estava agora perfumado pela fumaça que como solvente estava diluindo as ânsias dos rapazes, la embaixo, a quebrada seguia em seu ritmo de sempre. Trabalhadores indo e vindo pelas ruas e vielas, senhorinhas de pele escura subindo e descendo os morros e escadas com suas sacolas, alcoólatras serrando uma pinga no boteco, um ou outro nóia na esquina provocando medo em alguma tia que se achava boa demais para viver ali, tudo normal.
Sem Diego perceber, Lucas dá vários pequenos passos à direita. Quando só, Diego se percebe em outro lugar.
Quando vê o rapaz de pele bem negra e cabelos muito crespos, uma senhora rapidamente pega o celular.
- Filho, me ajuda. Vocês jovens parecem já nascerem sabendo lidar com isso. Não sei adicionar alguém no watzap. Me ensina?!
O rapaz guarda discretamente a faca e mostra a senhora como se faz.
Agradecendo, a mulher atravessa o ponto de ônibus onde estavam e chega a outro lugar. O rapaz segue em diante. Ao dobrar a esquina retorna à escadaria. Diego estava com a cabeça inquieta, sabia que poderia estar correndo risco, o que o deixava mais calmo era o recado que Lucas o deu mais cedo, dizendo que o Marquinhos falou que ia arrumar problema com ele não, que era para esquecer essa treta e deixar essa ideia errada para trás. Pelo menos Lucas era um cara de confiança.
Dois homens sobre uma moto parada aos pés do escadão, Lucas estava de pé a uma distância segura, apontava o amigo com o dedo indicador, que demorou a entender o que estava acontecendo. O revolver na mão do ocupante de trás da moto nem sequer tremia. Lucas chorava.  Calado, Diego sentiu uma fisgada no peito, depois escutou um barulho alto que se converteu em zumbido; sentindo frio e sede, dormiu.
Acordou em um apartamento. Vários colchões no chão; cada um ocupado por alguém. Não é a primeira vez que Diego desperta nesse ou em outras pocilgas. E só aí que Diego percebe o tempo. Aproxima-se de um senhor.
O mais velho oferece ao garoto um saquinho tendo o mesmo que as gringas compraram.
Abre o pacotinho.
- Bacalhau!?! Gostava mais da maneira como você enrolava o baseado. Tão dedicado; um verdadeiro mestre. Quase um doutor na arte religiosa de bolar um beck.
Devolve ao sujeito e vai a cozinha lavar a mão. O cheiro de sangue somado ao do peixe salgado não sai. Passa sabão e pouco adianta. Raspa a mão com a faca recém comprada sem sentir-se limpo. Põe a faca de lado. E chora. Não consegue usá-la; ainda.
O senhor vai até ele, põe a mão no ombro do mais jovem, puxa-o para si. O garoto abriga a cabeça no ombro do homem que entre as costelas de trás perfura com a faca nova o coração e a mantém até o jovem parar de soluçar. Antes de silenciar-se Diego diz:
- O fedor da pólvora não é pior nem melhor do que isso.
- Amigo, são tantos choros… O seu, o de sua mãe, o meu. Um dia poderei – o adolescente desvanece – não sentir?
Diego se levantou da cama e não haviam paredes que o guardassem.
Caminhou pelo jardim nublado. Ao passar entre dois troncos cujos galhos formavam uma porta, chegou em um campo de futebol.


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Costumo dar muito murro através do que escrevo.
Contudo, muita gente nem sente de tão anestesiada que estão.
E o Brasil é uma imensa casa verde.

Ofereço como presente aos aniversariantes:
Thaís Weber, Virginia Martínez e Isaac Andrade.

Recomendação importante: leia:
“No Escadão”, de Thiago Menezes:
https://milagulhas.blogspot.com/2020/01/no-escadao.html

Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO.
É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes.
É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”.
Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”.
Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).

Imagens:
Portal de Árvores e de Rubem Leite: feitas pelo autor.
Menezes Silva: propriedade do próprio.

Menezes Silva é formado em Letras, pós-graduado em Neuroaprendizagem e prática pedagógica.
É professor de Língua Portuguesa na rede municipal de Timóteo, professor e coordenador no Núcleo Atitude em Ipatinga pela Rede Educafro Minas.

Escrito por Rubem Leite entre 25 e 27 de janeiro de 2020.

Um comentário:

Menezes disse...

Amigo, nem tenho palavras. A maestria com que o senhor consegue escrever, descrever, reinventar e modelar as histórias é uma das formas mais encantadoras de arte que conheço. Me sinto honrado pelo espaço que me cedeu em sua página.
Grande abraço.