quarta-feira, 7 de outubro de 2009

A VOZ MINHA VÓS ou MASSACRE DE IPATINGA – 46 ANOS

06 e 07 do 10 de 2009


- É tudo ilusão. Ilusão como ser feliz para sempre.
- Não!
- Chore, criança. Não importa sua idade, chore.
E um choro pequeno, baixo acontecia.
- Felicidade é idiotice. Amor é estupidez. Esperança é ridícula.
E o choro crescia.
- Acha que o mundo é um conto de fadas?
- Não é?
- O mundo é um conto de terror.
E o choro acontecia.
- No mundo não existem donzelas em perigo, cavaleiros em armaduras reluzentes, príncipes encantados. No mundo o que existe são bruxas perigosas, cavalheiros em mantos negros, escravos acorrentados. O que existe é um chapéu segurando uma Bíblia montado num cavalo. Isso é tudo que existe.
E o choro, grande e alto.
Enquanto a voz de uma pessoa alta de pensamentos baixos, imensa de coração minúsculo, larga de mente estreita destilava mais trevas uma porta se abriu. Uma réstia de luz passou pelo vão atingindo parte do rosto de Benito. Acaso?
- Ah!
- Está se sentido ridículo?
- Nã-não! Estô-ou com esperança.
- Esperança? Rarrá. Pare e pense. Nada mais existe além do chapéu no cavalo. O que você sente é o ridículo.
Pela porta entra da rua o som de um canto de pássaro mudando a esperança para felicidade. Coincidência?
- Sente-se idiota, Benito?
- Nã-não! Estou bem, quase feliz.
- Feliz? Rá. O que você ouve é o chapéu falando pela Bíblia das trevas.
Benito, dando um passo para frente, tem o rosto todo preenchido pela luz transformando o bem estar em alegria e acrescentando amor à sua vida. Destino?
- Está se sentido estúpido, rapaz?
- Não! Tenho esperança. Estou feliz.
- Você é amado, Benito. O chapéu te quer. Ele está vindo a cavalo pegar você amarrando em seu sovaco uma Bíblia i-gual-zi-nha. Ouça! Está escutando um relincho? Está escutando o livro? Estou vendo a sombra do chapéu entrando pela porta. Ai! Agora é tarde. O chapéu já entrou.
- Agora é tarde, voz. Se ele entra ou não estou livre. Nunca autorizei sua presença. Se me é imposta o enfrento. Não sou donzela em perigo. Uma porta sempre se abre quando outra fecha. Príncipes encantados? Escuto a voz das aves. Se precisar de armadura reluzente, tenho a arte. Eu dou meus próprios passos. Se não puder falar, escrevo. Se não puder agir, interpreto. Se não puder ensinar, conto estórias. Se não puder aprender, leio livros.
Aproximo da porta que se escancara. Sorte? O chapéu tenta apertar minha mão enquanto passo pela porta pondo-me ao sol. A Bíblia das trevas se aproxima para me seduzir, mas o sol a abate. O cavalo tenta me coicear, mas está amarrado. Eu caminho solitário. Só. Bem longe vejo outros já livres. Ouço outros ainda se libertando. Eu caminho esperando encontrar companheiros. Vejo Rezende Junior andando. Sorrio!

Rezende Junior segue à frente de uma pequena fila. Junto-me à procissão que cresce a cada metro. Seguimos para a Praça dos Três Poderes. Circundamos a Prefeitura, a Câmara, o Fórum. Rezende, eu e Gálu paramos frente ao coreto das bandeiras. Atrás de nós três carpideiras e uma viúva. Rezende desce a Bandeira de Ipatinga e a viúva o ajuda a colocá-la no caixão. Laia levanta uma arma apontando-a para Rezende e a viúva. Corações disparam. Bocas param num “óóóó”. A multidão a cerca. Laia é covarde e corre, foge para o interior da ex-prefeitura. No alto da Catedral das Trevas o chapéu recebe Laia que entra com Unzinho Qualquer. A procissão continua.
- Se não fosse Artista aposto que você participaria. A voz diz.
- Se não fosse a Arte a procissão não aconteceria. Responde Benito.
A procissão não para. Bandeira morreu do câncer que lhe corroeu quase 30%. Outros 40% gemem e choram transformando o Vale do Aço em Vale das Lágrimas. Alguns fazem alguma coisa. Quantos? Chegamos à Senhora da Paz. Não se sabe se é antes da noite ou se é antes do dia. Tudo é penumbra.
- Que seja aurora, meu Deus. Falo para mim mesmo.
No cemitério a viúva chora. Chora. Chora. As carpideiras ajudam. Alguns fazem alguma coisa. Quantos? O quê?
- A lama que vocês irão comer é por causa dos que não me querem. Eu sou Moisés que matou um homem por Deus. Eu sou Jesus que iria salvá-los. Eu sou Deus que os destruirá. Mas não se preocupem. O câncer que destruiu a Bandeira serão os salvos.
Enquanto o chapéu discursa Laia fala para Unzinho Qualquer:
- Serão salvos até que o chapéu os devore.
Riem.
- A penumbra perdura. Estou com frio.
- Não posso acreditar, viúva.
- Três anos? Serão três anos de trevas, Benito?
- Não posso acreditar, Gálu.
O sorriso do sol? Será só esperança ou será que ao longe o sol realmente começou a brilhar? Deus! Creio que a multidão na paz e com força estará agindo.

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