domingo, 17 de março de 2019

FOLHAS DE OITIS FORRAM O CAMINHO



Com quantos quilos de medo se faz uma tradição?
Senhor Cidadão, de Tom Zé.

A melhor pessoa deita comigo.
Saí de casa e me encontrei.
Olhos Tristes, de Gabriel Miguel.

O sol mal deu as caras e me obriguei a levantar pra ir ao banheiro e depois fazer café que tomei comendo pão de ontem. Saí sem fome e sem vigor. As casas de minha rua podem ser bonitas. Talvez não mansões. Com certeza não mansões. Há rebocadas, há pintadas. Tem uma com pálida tinta verde. As ruas vizinhas têm casas pintadas tipo a minha.
Saí ao Posto de Saúde no bairro vizinho e estava de férias. No dia seguinte fui à Unidade de Saúde de outro bairro e a consulta seria para daqui a vinte dias. Melhor seria esperar o fim das férias. Mas não tive vigor pra ir. Quando pude, estava fechado; pra sempre. Voltei pra casa. Dia seguinte minha energia estava fraca. Pensando: Pra ir não precisa pensar em ir ou querer ir; basta ir. Levantar sem pensar ou desejar; basta levantar e ir. Força? Não espere força. Vá. Meu Deus, como pode ser tão difícil? No posto de saúde aguardei na fila lendo Jessé Souza e Noam Chomsky. O portão se abriu. Entramos. Sentei. A funcionária: “Toda quinta-feira o atendimento é só pra gestante. Não marcamos consulta em hipótese nenhuma; exceto em casos de emergência e mesmo assim só depois da última grávida ter sido atendida”. Sem ânimo sequer para chorar, levantei e voltei pra casa.
Na entrada do bairro sentei no meio fio, debaixo de uma árvore. Os ruídos do trânsito, das pessoas, dos rádios não ouvi. Mas havia ararinhas verdes na árvore e a elas escutei me exaltando a levantar e ir.

A igreja católica de meu bairro é consagrada a Nossa Senhora dos Bons Costumes. Lá o padre me diz com voz lenta, morna:
- Por Nossa Senhora! A falta de pagar o Dízimo é o egoísmo que nos afasta de Deus.
- Não pode ser realidade que é o dinheiro que nos aproxima de Deus.
- Jesus, Maria e José! Não é o dinheiro, filho. É a doação do amor...
- Eu dou amor a quem encontro.
- Virgem Maria! É pouco. Tem que dá dinheiro ou vai para o purgatório.
Na rua olhei o céu. Moedas tilintavam no interior da Casa Paroquial. Que santa música saía pela janela às ruas do bairro. Da arvore bem-te-vis me consolam.
Em um muro, a propaganda da Funerária Nova Aliança diz: “Velório Online”. Ah! A modernidade em seus avanços tecnológicos. Nem se precisa mais sair de casa para velar o insigne partinte e confortar a cada insigne ficante.
O pastor da ‘Igreja Assembleia de Deus é Amor Universal da Maranata dos Batistas’ declara com voz gritante, falsamente calorosa:
- Amém, Jesus! O não pagar o Dízimo é a falta de fé que nos afasta de Deus.
- Por que só quem paga tem fé?
- Ô, glória! A fé exige entrega...
- Mas fé não se compra nem se paga...
- Aleluia! Ou paga o dízimo ou vai para o inferno.
Na rua olhei o céu. Moedas tilintavam no interior da secretaria da igreja. Que angélica música saía pela janela às ruas do bairro. Da árvore bem-te-vis me consolam enquanto os oitis na rua deixam suas folhas conhecerem o asfalto e as calçadas dando cores verde, amarela e marrom ao cinza dos chãos das ruas.

Em casa minha mãe disse:
- Vá trabalhá, fi. Isso de livros é só pra escola. E... E já chega distudá. Tá véi pra isso.
Varri o quintal sem ela precisar mandar.
No banheiro mijei e lavei as mãos.
No meu quarto brinquei alguns minutos com minha mão direita. Quando relaxado, dormi um pouco. Acordei, peguei um livro e deitei tranquilo. Ao fim da tarde tomei meu banho pra escola.
Após as aulas fui com três colegas à pracinha do bairro. Cada qual se encontrou com sua garota sem mais ouvirmos uns aos outros. Só beijos e mãos.
Voltando a casa deitei comigo e com Caio Fernando Abreu.
Sorri a pensar em seiva. Dormi... Seiva branca, quente.
O sol brilhava fora da janela e eu só olhava a luz crescendo no quintal. Até que não pude mais. Então: Levantar; banheiro; café; alimentar-me.
- Vai procurá sirvíçu, meu fi. Estudá num é procê.
Varri o quintal, lavei banheiro, fui ao quarto estudar.
Almoçando:
- Vai procurá sirvíçu. Seja hômi.
Saí a procurar serviço. Não encontrei.
Em casa tomei banho pra escola.

No recreio:
GTM matou LHC e se matou. Em idade, o menor matou o maior. Mas antes mataram e feriram, a tiros e machadadas, alunos e funcionários. E nenhuma escola pública do Brasil está segura; fruto da imitação brasileira aos Estados Unidos.
Os nomes dos assassinos não merecem ficar na história, mas Silmara Morais é digna. Ela e uma colega, ambas encarregadas da merenda, abrigaram na cantina meio cento de alunos e fizeram barricada na porta com o frízer. Em outro lugar das escolas uma professora fez barricada com o próprio corpo na porta de sua sala; salvando a si e a sua turma.  Há também a adolescente Rhyllary Barbosa, faixa branca em jiu-jitsu. Superando o medo lutou contra LHC e conseguiu abrir um portão para ela e outros alunos escaparem.

Agora estou deitado olhando o céu com nuvens claras e escuras. Ao meu lado, com a mão esquerda debaixo do meu pescoço e acariciando meus cabelos com a outra mão, está a melhor companhia e ela me incentiva a levantar para acompanhá-la.
Olho minhas mãos e vejo minha seiva... Sorrio. Uma seiva diferente dá que estou acostumado a tirar no meu quarto.
Ouço ararinhas me chamando de longe. Não, não são histriônicas. Barulhentas, mas harmônicas. Pela primeira vez em muito tempo não me sinto desanimado ou ansioso. Confortável é como me sinto.
Eu e ela nos levantamos. A acompanho escutando ararinhas e bem-te-vis. Vejo folhas dos oitis forrarem meu caminho de verde, amarelo e marrom.


Ofereço como presente aos aniversariantes:
Jeferson Adriano, Rafah Strobino, Maria Cloenes e Aléxia Silva.

Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO.  É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. É pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”; autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).
Imagens:
Amanhecer na rua Uberaba – foto do autor.
Rubem de chapéu – foto de Vinícius Siman.

Manuscrito na tarde do dia dez e trabalhado entre os dias 15 e 17. Tudo em março de 2019.

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