domingo, 7 de março de 2021

HÁ O QUE VALE MAIS DO QUE AS PESSOAS

  

- No ofrezco fiestas a ti. Solo palabras y mi corazón de padre.

- No sos mi padre. Solo es mayor que yo.

 

Jede Einschränkung ist für den Künstler anregend.

(João Guimarães Rosa em uma entrevista na Alemanha. Minuto 5:45: https://www.youtube.com/watch?v=ndsNFE6SP68 )

 

Caras mulheres, não lhes anseio nada que que as pessoas te desejam “no seu dia”; apenas grito: Façam!

Homem não faz nada que não seja sob orientação de mulher. Até Jesus só começou a Sua missão depois que Sua Mãe mandou.

 

 

As dez da manhã do dia 31 de janeiro de 2019 Ôldi recebeu a notícia de Quide que iria viajar sem comemorar a passagem do ano com o pai. Após uma tensa conversa, as últimas palavras do filho:

- Não é meu pai; apenas me adotou.

No passar de 2020 se falaram pelas mídias sociais; no meio de janeiro Ôldi ainda buscava entender “como não sou o pai” e quando março estava quase no fim:

- Olá, tudo bem? Houve um pequeno problema no meu watzap e perdi todos os contatos. Se for de seu interesse. Se tiver realmente alguma vontade manter contato por watzap, adicione-me, por favor. Mas caso contrário, prefira manter um distanciamento, um silêncio. Aceitarei tranquilamente, de bom grado. Cada um cuidando da própria vida; seguindo seu caminho. A gente se gosta, tem afeto, mas talvez prefira o silêncio. Daí, se quiser ter real contato; se acha que vale a pena adiciona-me. Abraços.

Ôldi se calou.

A dor de cabeça está terrível. A vontade de que o dia acabe e a noite não termine não se realizam nem após o uso de quatro pílulas para dormir. Duas às duas da tarde e outras mais as dezoito horas.

Ôldi falou:

- Disse precisamos de silêncio. Mas na verdade acho que você necessita de silêncio. Que eu me cale. Não, não estou ofendido. Só estou pensativo. Quero colaborar, quero estar ao lado. Mas se minha presença for agradável, suportável, útil.

O pai se calou para tentar pensar apesar da dor de cabeça.

- Aí, pare e pense! Não faça uma ação irrefletida. E se achar “vale a pena”, contate-me para voltarmos a ter contato no watzap. Caso contrário, fique tranquilo.

- Está falando o quê, homem?!? – O filho riu. “Homem”, não “pai”. – Passe o número.

- O que estou falando? É que tenho notado tantas vezes. Que tenho sido desconfortável, desagradável... Não sei o termo adequado. E meu objetivo não é esse. Se estou sendo pernicioso... – Para diminuir o peso da conversa: Se não conhece a palavra é uma boa chance de buscar no dicionário. – Se estou constrangendo... Então peço desculpas. – A dor de cabeça lhe obriga a pausar a fala por dois ou três segundos. – Mas te amo demais e quem ama questiona. Quem ama busca conversar, apoiar, criticar... E se isso está sendo irritante para você...

Quide apenas ouviu sem nada dizer.

Julho chegou e passou. Ôldi então continuou:

- Quem ama faz comentários, fala, preocupa-se, pensa... Só as pessoas que não amam não estão nem aí. Mas se meu amor está sendo incômodo então o silêncio será a melhor opção. Espero que a gente conversa, porque te quero muito. Mas aí é um decisão sua.

- Que isso! Estou ultimamente dispondo de pouco tempo para as pessoas. Para viver como mochileiro há momentos que tenho que me virar com malabares, mas outros que tenho que trabalhar em bares e restaurantes. Isso gasta muito tempo e energia. Principalmente quando trabalho em ambiente fechado tolerando clientes sem máscaras e grosseiros. – Talvez tenha reparado no silêncio daquele que não chama de pai e continua: Acho que por isso pareço distante... Desprezo no comércio é mato. Pior que nos faros.

- Entendo... Acho. Se eu não tivesse a arte estaria destruído, aniquilado. Estou tão abatido que as dezenas e centenas de páginas que lia por dia mal consigo chegar a dez. – Quide não pergunta o que lhe abate. – Apesar disso estou lendo porque sem essas dez páginas não sobrevivo ao dia. Ler! Ler é o que me fortalece. Escrever é o que me alivia do peso, é o que joga fora o que está me machucando. Como disse, estou sem energia, mas esta leitura e esta escrita elas recarregam o suficiente para que eu aguente o dia. Sem a arte, seja recebendo-a ou produzindo-a, eu já estaria acabado. Então a arte é principalmente minha força para resistir. Mesmo que minha resistência esteja rastejado não como se humilhasse, mas como um bebê a engatinhar fortalecendo os músculos para levantar-se e andar. A mim, pelo menos para mim. Não posso dizer pelos outros. Mas a mim a busca de um psicólogo está me ajudando. Hoje perguntei a Cleber Assis, um psicólogo: “O porquê? Pra que serve a psicanalise? Como ela nos ajuda? Como ela funciona? Talvez ele me responda.

Quide apenas escutava. E os dois se calaram.

Chegou 2021.

- Por que leciono? Para tentar fazer meus alunos serem cidadãos. Não apenas formigas num formigueiro. Seguindo regras, aceitando a sua posição. Quero-os cidadãos. Aqueles que participam, que lutam e não apenas sobrevivem. É uma batalha com baixa possibilidade de vitória. Até porque tenho que ponderar bens as palavras porque sofremos censuras das mais variadas fontes e nas mais diversas formas. Mas leciono para continuar a ter força para viver. E escrevo por motivo semelhante. Se na educação tenho que disfarçar as reflexões na escrita posso tascar na cara as violências que sofremos da sociedade. Apesar de quantas e quantas vezes me xingam, agridem. Afinal é como diz a música “Vida de gado. Povo marcado, povo feliz”. Não quero que as pessoas sejam gado. Por isso ensino e escrevo. Para que sejam cidadãs.

Quide nada disse. Então Ôldi perguntou:

- E você, o que está fazendo para as pessoas serem cidadãs e não formigas?

Quide não respondeu e Ôldi continuou:

- Sou uma cigarra e o destino da cigarra é ser devorado pelas formigas ou berrar até estourar. Em ambos os casos, qual é o resultado que ela produz na floresta? Não me importa a resposta. Berro como uma cigarra. Enquanto berro alguém sempre escuta algo. E talvez, apenas talvez, isso possa fazer alguma diferença na floresta ou ao menos no formigueiro. Com ajuda da educação, da leitura, da escrita, da psicanálise, de meus cães e de alguns amigos a gente quando cai se levanta, sacode a poeira e continua a caminhada.

Olhou o relógio. Cinco e meia da manhã. Encerrou a conversa sem dizer o motivo. E o garoto sem perguntar. Só se despedem. 

No dia onze de fevereiro sua mãe, dona Etienne, fora internada por suspeita de covid. Por ter noventa e um anos necessitava cuidador. O protocolo exigia troca de acompanhante somente após vinte e quatro horas após a entrada. 

O Hospital Municipal de Ipatinga há quartos com espaço para quatro leitos, mas estão com cinco e alguns estão sem a campainha para chamar enfermeiras. Filas de formiga caminham pelos cantos. Apesar não nos enojar, são tão imundos e infeccioso quanto às baratas. Paredes e portas descascadas e lascadas. Assim como ausência de vidros nas janelinhas das portas. Os acessos para os quartos ou dos banheiros estão desnivelados, não fechando. Goteiras em todos ou quase todos os corredores do hospital assim como infiltração em várias paredes. Pias com torneiras quebradas, dificultando fechá-las. Ou pias soltas das paredes. Parte debaixo da descarga amarelo de ferrugem. Ao redor do chuveiro paredes amarelas de, creio, bactérias. Só os funcionários “funcionam”. Fazem o melhor com o que têm.

Alternando com um sobrinho, Ôldi fora nos dias 12, 14 e 16; neste dia ela morreu e o atestado de óbito anunciava morreu por parada cardíaca súbita motivada por “alzáime” agravada por pneumonia, mas a causa principal é o covid.

Dezoito de fevereiro Ôldi começou a sentir os sintomas da doença.

Agora estamos iniciando a segunda semana de março. Quase seguiu o protocolo de isolar-se por quatorze dias, mas os sintomas pioravam. Numa segunda-feira, onze dias após a infecção, foi ao posto de saúde e o mandaram embora porque os médicos se recusavam atender suspeitas de covid. Teimou e voltou na quinta, conseguiu marcar um teste rápido para a próxima quinta, mas lhe disseram: Não há material para testes. Estamos esperando que chegue na próxima terça-feira, na quarta faremos o balanço e se tiver chegado poderemos testá-lo na quinta.

Na quinta-feira a enfermeira não estava no posto de saúde. A Prefeitura decidira de última hora fazer uma capacitação das enfermeiras da rede pública do município e não recebeu notificação nenhuma. Quiseram remarcar para a outra quinta-feira. Ôldi sentiu-se mal então remarcaram para o dia seguinte, as sete horas. Por isso encerrara a conversa com o filho.

Levantou-se da cama, fez café e o tomou com leite. Saiu de casa, quinze minutos depois estava sentindo-se levemente cansado, atravessou todo o Centro, chegou ao bairro Vila Ipanema, atravessou-o por um terço até chegar ao posto. Sentindo-se cansado ficou a esperar a chegada da equipe do posto. Enquanto aguardava ouvia o povo dizer:

- Fui lavado no Sangue de Jesus, por isso sou imune. – E ficou imaginando essa vampiresca cena dos praticantes de religião.

- Olha quanta gente de máscara. Tudo teve covid, pois só burro ou doente usa máscara.

Houve bobagens mais, mas quem ler Rubem Leite já entende a estupidez humana para necessitar de mais exemplos. Há que ter estômago para ler este misantropo que vos fala.

O posto abriu, chegou a enfermeira, preparou a sala, fez o teste rápido. Confirmado! Está com alguma das novas cepas do coronavírus. A enfermeira fez o encaminhamento para o UPA. 

E Ôldi voltou a pé ao Centro. Um determinado momento parou para admirar as flores do campo em um terreno vazio e pensou: Tem mais valia que o presidente, que o governador e que o prefeito. Vale mais que o povo e talvez que qualquer ser humano. Continuou o trajeto, pegou ônibus para o UPA, passou o resto da manhã entre esperando ser atendido e o atendimento. Ao fim recebeu receita para três medicamentos para cinco dias, foi ao posto de saúde mais perto, conseguiu dois dos remédios, estava sem dinheiro para o terceiro, foi ao ponto de ônibus, pegou um que o levasse para casa e, muito cansado, lá chegou a uma da tarde.

Medicou-se, banhou-se, comeu algo, leu um pouco de Câmara Cascudo, dormiu mal. Levantou-se para um novo dia sem saber pra quê.

A pandemia está mais forte que nunca. Nenhum país está aceitando a entrada de brasileiros. E as Secretarias de Educação do Vale do Aço querem aulas presenciais afirmando seguirem normas de segurança sanitária e os fatos provando que não. O Prefeito, o Vice-Prefeito e Secretário da Saúde de Timóteo não sabem que decisão tomar. Mas ordenaram mandar novos casos de volta para casa.

Mas dizer que os prefeitos ou secretários de saúde e educação não sabem o que fazer é tolice. Já estão sendo comunicados há longos meses. Apenas não quiseram agir.

O Governador Zemagogo está em silêncio e os prefeitos do Vale do Aço não falam nada. Até as flores têm mais o que dizer e fazem mais pelo planeta.

Terça-feira Ôldi tomou o último remédio, mas os sintomas persistiam. Na quarta sentiu-se mal. Na quinta chamou o SAMU:

- Nada podemos fazer, senhor. UPA, Hospital Municipal, Márcio Cunha, Unimed, os hospitais de Fabriciano e Timóteo estão superfaturados de pacientes. O senhor terá que curar-se em casa com os remédios que o médico lhe deu.

- Estes... já... acaba...ram...

- Então terá que vir buscar mais no posto de saúde.

- Não... con...si...go.

- Nada podemos fazer senhor. Busque ajuda de algum famil...

Estava demasiado cansado e sem ar para discutir então desliga o telefone. Para caminhar estava ainda mais esgotado. Ficou em casa, deu ração para os cachorros, mas não conseguiu fazer algo para comer; não tinha força, não tinha ar, não tinha apetite. Deitou. Dormiu mal até o dia seguinte.

Na sexta-feira a escola lhe cobrou a presença. Com esforço respondeu:

- Es...tou... mui... to... mal. Por favor..., me aju...dem. – Ele recebe:

- Seu atestado já venceu. Venha trabalhar!

 Foi ao banheiro aliviar-se da diarreia: pura água. Deu ração para os cachorros; não conseguiu preparar nada para comer e voltou a dormir aquele mesmo mal sono.

No sábado se levantou, batendo nas paredes foi ao banheiro aliviar-se; deu ração para os cachorros, encheu até a borda a vasilha de água para os bichinhos e leva a ração para sua cama. Chorou com medo: Que acontecerá com Florbela, Pessoa e Iemanjá? Voltou a dormir sem nada comer.

Domingo não se levantou; o corpo não tinha água para lançar fora; deitado jogou ração para os cães.

A segunda-feira amanheceu com os ganidos dos cães. Os vizinhos se irritaram e gritaram para o professor calar os bichinhos.

Uma usuária de crack abre o portão e entra; chorando os cachorros a levam para o quarto. A mulher chamou o SAMU, que finalmente veio; expulsaram a “viciada”. Arrancaram a roupa do velho professor, enfiaram o corpo pelado num saco preto e o levaram para o cemitério. Aos sem ninguém a Prefeitura já ordenara meter os corpos num caixão de papelão e os jogarem num buraco.

O Senhora da Paz preencheu uma papelada com os documentos encontrados na casa. Não há ninguém para receber o atestado de óbito. Por quê? Saberá abaixo. Sem ninguém para receber o documento enviaram-no para o RH da Prefeitura que chamou outro professor. 

Preocupado Ôldi olha os cachorros que são pegos pelos usuários de crack. Estes cuidam dos animais melhor do que deles mesmos. Aliviado vai-se embora.

Os parentes agradeceram sua morte. A casinha onde morava pertencia aos parentes que a queriam para vendê-la. Não mais terão que expulsá-lo da casinha como planejavam.

Quide nada ficou sabendo. E para quê?

Tantos anos se passaram quando este voltou a cidade. Os parentes cada um num canto obscuro uns aos outros. Ninguém se lembrava de nada. Exceto a usuária que o encontrara ainda vivia e disse o que acontecera. Florbela olhou para Quide, mas não abanou o rabo.

Sete anos; e dois anos antes a ossada tinha sido tirada e misturada numa vala comum.

Se Quide chorou não importa ou alguém se interessa por suas lágrimas? Eu não.

Tem alguma relevância para os mortos o descaso dos governos, a indiferença dos vizinhos, a ganância dos parentes? Estes têm Jesus para gritarem nos cultos. Só os cracudos sentiram sua falta. Talvez algum aluno; – o autor ri mordaz – vá saber.

Nada importa: A sociedade mudara bulhufas.

 

 

Observação:

Como semana atrasada eu estava de luto (ainda estou) não tive condições de comemorar aniversários de quem gosto muito. Abaixo seguem a segunda metade dos aniversariantes da semana atrasada e os da presente semana. Não olhei por “preferência”, pois todos são queridos; segui a data de cada um.

Ofereço como presente:

Gustavo Fernandes, Edson J. Morais, Gineraldo Adão, Tiago Gonçalves, Ramón K. Mendes, Rafael Henrique, Thiago Vaz, Eunice Profeta, Lene Teixeira e Jacomar A. Braulio,

 


Rubem Leite
é escritor, poeta e crontista. Escreve todo domingo neste seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. E pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”. Autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).

Imagens:

Fotos do autor;

Charge tirada do facebook.

 

Escrito entre 13 de dezembro de 2020 e 07 de março de 2021.

3 comentários:

Unknown disse...

Sinistro,mais é o espelho da humanidade infelizmente.

Glaussim disse...

Não deixe o Old Guy morrer! Não deixe o Old Guy se matar! O blog é feito de samba! Samba pra gente sambar!


Assim canto ao saber disso. Torci pro old tomar um coquetel bolsonaritté de azitromicina, Lavitan, catuaba, chá de boldo, chá de camomila, chá de cavalinha, sopa de peito de frango e dipirona e soro caseiro pra combate da diarréia.

Unknown disse...

Maravilhoso, como sempre!!