quinta-feira, 11 de março de 2010

FOME

Rubem Leite

10-11\3\10

Hoje (11) é o 7º dia que minha cadelinha “dormiu”,

como ela não é gente, óbvio que não devo me enlutar.

Assim, que o mundo astral onde você se encontra, Cam, seja muito bonito. Inté.


Que horror! A velha não sabe nem segurar os talheres. É uma grande vantagem ser louro com cabelinho de anjo. Meus olhos... Melhor seria se fossem azuis, mas verdes também servem, claro. Pensa forçando o sorriso.

- Você quer mais um pouco?

- Não, obrigado! A senhora é bem gentil.

- A Senhora está no Céu.

Protesta, mas sorri e continua

- Tem certeza? Um jovem forte feito você... deve comer bem, ah, comer muito.

- Ah! Sim, costume comer bem. E já que a senhora insiste.

- Você. Gosto mais assim.

A mulher não é velha. Só tem uns quarenta ou cinqüenta anos. E nosso jovem de rua, que já teve berço, perdeu tudo. Seu pai desfalcou a empresa, foi preso e suicidou. Ou será queima de arquivo? E como sempre, a aparência conta mais do que a pessoa. Bonito, branquíssimo, forte, mas não musculoso, graças a Deus (isso assustaria as velhinhas. Precisa parecer jovem, bonito, desamparado).

- Daqui vou para minha casa. Onde você mora?

- Estou hospedado num hotel. Sou de Belo Horizonte. Foi muito bom a senhora, digo, você aparecer.

- Não entendo como eu, uma simples dama, poderia espantar os dois marmanjos que te roubaram...

- Você é bem altiva. E o fato de aparecer alguém os intimidou, imagino.

- Como é mesmo a aparência deles...

- Um é negro e o outro tem cabelos castanhos.

- Não me lembro bem...

- Mas a senhora viu os vultos, não viu?

Fala induzindo a mulher acreditar que viu algo. O que ele quer é atrair alguém para poder encher a barriga e ter, quem sabe, um lugar para dormir. Nem que seja com ela.

- Vi! Acho que vi...

Ele sorri...

- Vi sim. Mas como você vai para o hotel? Deixou algum dinheiro lá?

- Infelizmente não. Estava tudo comigo. E agora vou ter que ligar para casa e deixar minha mãe aflita. Meu Deus! Ela é cardiopata. Tenho medo de que ela passe mal à toa. Já que você me socorreu. Será que... Não deixa para lá.

- O quê?

- Não! Pode deixar. Você já fez muito.

- Pode falar. Um bom menino feito você não precisa ficar desamparado.

Bom menino... Sei, velha safada. O que a senhora quer é meu corpo jovem. Pensa e diz

- Se não for incômodo, a senhora não sabe de um lugar onde posso passar a noite?


Você que me ler, o resto da conversa é obvia e você já sabe para onde os dois foram.


Vinte e sete anos atrás nasci numa tarde de chuva. Papai estava trabalhando e só ficou sabendo no dia seguinte. Nem notou a ausência da esposa. Fazer serão com a secretária e conversas com os sócios despende muito tempo. Na escola não era importante estudar desde que eu passasse de ano. Mas mesmo assim aprendi bastante coisa. Afinal, que amigos tinha para não estudar? Visitar a família da mamãe não era boa idéia. Para ela. Meu sotaque mineiro, de BH, era engraçado no Rio. Papai não ficava em casa nem se dava bem com o lado da mulher. Que fazer? Ele não queria que ficasse em casa, atrapalhando os trabalhos dele. Ela não queria me levar para o Rio. Com onze anos já era grandinho. Podia ficar sozinho. O que eram duas ou três semanas sem eles? Um paraíso.

Quinze anos. Não sou moça, portanto não significou grande coisa.

Dezoito anos. Papai estava na firma. Mamãe no Rio. Sai para festejar o grande dia.

Música de roda de capoeira. Os mais lindos movimentos eram dela. Tinha mais alguém na roda? Fiquei o tempo todo e ela acabou me vendo olhando só para ela. Acho que não a assustei.

- Oi! Sou Márcia. Você?

- Breno.

- Gostou? Você joga?

- Não!

- Parecia. Estava tão atento...

- Em você. Quero dizer, achei-a linda. Seus movimentos sensuais... não, movimento lindos...

Rarrá.

- Gostei.

- Ah! Bom.

Fui para o barzinho com a turma dela. E a gente se viu na semana seguinte. E na outra. E em todos os dias. Um mês e a gente fez sexo pela primeira vez. Nunca pensei que fosse tão bom. Imaginava. Mas não sabia. E a gente se viu todos os dias. Mamãe descobriu. Não aceitou. “Uma pobre?”. Ameaçou. Chorou. Fez escândalo. Papai morreu, já disse, e foi nesse período. Mamãe não tinha dinheiro. Eu era estorvo. Márcia queria estudar. Nada sério entre nós dois. Bastava meu pinto. Foi para o Sul. Fui para as ruas. Hoje pareço ter trinta e cinco. A vida é dura nas ruas, mas é mais livre. E sou mais feliz agora que antes. Quase feliz.


Você que me ler, aconteceu um fato inusitado para o nosso Breno.


- Pode falar. Um bom menino feito você não precisa ficar desamparado.

- Se não for incômodo a você, não sabe de um lugar onde posso passar a noite?

- Sim! Onde você quer dormir?

- Aqui perto tem um hotel barato e sem barata. E jeitosinho. Acho que podemos passar a noite lá.

Acaricia o braço da mulher que lhe sorri. Vão para o hotel. Ela paga o pernoite e sai. Antes, sorri e diz

- Um bom menino não precisa ficar desamparado e uma boa mãe não exige sacrifícios. Você tem meu telefone. Ligue se precisar.


Não! Não era a mãe do nosso rapaz. Era uma mãe. E com esse final chato para uns e sem pimenta para outros despeço com a noite feliz de nosso amigo.


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