domingo, 22 de maio de 2022

O PROFESSOR DO BANHEIRO E O GAROTO DO BEBEDOURO

 

1978

Em agosto, faltando trinta dias para eu completar dez anos, morri!

Foi assim:

Garoto magro, educado e, segundo meus coleguinhas, com jeito de menininha. O acosso era diário. Sim, vou dizer acosso e não bulling.

Mas antes de falar de mim falarei do professor Frederico. Um velho magro de bengala e muito bravo. Eu e uns poucos gostava dele, mas outros o odiavam.

O bairro era violento e tanto eu quanto o professor a gente morava perto da escola.

A manhã estava ensolarada, mas fazia frio. Os quatro alunos que mais me provocavam saíram da sala sem serem vistos pelo professor a quem desrespeitavam.

- Professor! Breno, Bryan, Kauã e Kaike foram lá pra fora.

Com um suspiro de desa... desa... desalento. Isso, desalento. O professor pegou a bengala e foi ao banheiro dos meninos para brigar com eles. Mas o que aconteceu foi diferente. Enquanto o professor brigava os quatro começaram a empurrar o professor pra lá e pra cá fazendo o coração do professor querer parar e quando perdeu o equilíbrio bateu a cabeça na pia.

Os quatro ficaram com medo e saíram disfarçadamente do banheiro. Ao ver os colegas com ar assustado e sem o professor fui à diretora falar que o professor tinha ido ao banheiro brigar com os meus colegas e ainda não voltou apesar deles já estarem na sala.

Acharam o professor caído perto da pia com a bengala em sua mão.

 

Dois meses depois, quando os colegas voltaram da suspensão. Sim! Eles foram apenas suspensos e não expulsos. Era só a morte de um velho professor que escorregou no banheiro e a vida de quatro meninos; filhos de pais perigosos.

O bebedouro perto das salas de aula estava com defeito outra vez e fui ao bebedouro da quadra de esportes. E lá estavam Kaike, Kauã, Bryan e Breno.

Foram só cinco minutos.

Bryan me segurou, Kauã me deu uns tapas bem doídos, Kaike ria falando Julinho bichinha, Julinho viadinho, Julinha mulherzinha. E Breno queria fazer um experimento. O que aconteceria se alguém bebesse Diabo Verde? Com a dor quis gritar, mas Kaike tentou tampar a minha boca, mas sua mão queimou e quando me soltou eu já não podia gritar. Fiquei caído espumando e confusionando. 


Os quatro pularam o muro porque não podiam voltar para sala com a mão um pouco corroída de Kaike.

Quem me encontrou primeiro foi o professor Frederico. Me ajudou a levantar e fomos conversar.

No final das aulas apareceu uma funcionária para catar o lixo e aos berros chamou a atenção da escola.

Mas não aconteceu nada. Era, de um lado, só a morte de uma mariquinha preta e pobre e do outro lado a vida de quatro meninos brancos; filhos de pais perigosos.

 

Eu e professor decidimos guardar a escola.

 

2018 a 2022 e nos tempos que hão de vir.

Alan é um mau aluno que maltrata os mais fracos e no dia que foi ao banheiro sem permissão... – risada assustadora do Professor do Banheiro que estava ao meu lado – Ele escutou três vezes o toc-toc de uma bengala, mas não viu nada. Porém, quando terminou... uma bengala cortou o ar arrancando-lhe a cabeça.

- Mas como uma bengala pode arrancar uma cabeça?

- É uma bengala assombrada...

Depois o Professor do Banheiro pegou a cabeça pelos cabelos e com o gancho da bengala prendeu o corpo pelo sovaco. E os enfiou dentro da privada, deu a descarga enquanto socava com a bengala até desaparecer no redemoinho que leva as porcarias pro esgoto.

- E como uma privada pode levar inteiros uma cabeça e um corpo?

- O Professor do Banheiro é assombração. Pode muitas coisas...

Uma semana depois acharam o que restava do Alan num córrego onde desaguava o esgoto da cidade.

Nikolly também fugiu da sala e foi ao banheiro fumar. O Professor do Banheiro bateu com a bengala na porta do banheiro: toc-toc-toc; parou, bateu outra vez: toc-toc-toc; parou, bateu pela terceira e última vez: toc-toc-toc. Assim que ela saiu, ainda com um pé no corredor e o outro no banheiro, a bengala cortou o ar arrancando-lhe a cabeça. Pegou-a pelos cabelos e com o gancho da bengala a arrastou invisível até o banheiro dos garotos. Enfiou-a na privada e deu a descarga socando tudo para atravessar o encanamento e desaguar no esgoto municipal onde antes encontram Alan.

E eu?

Todos os acossadores, quando estão a sós bebendo água, vou empurrando pelo ralo à medida que vão se dissolvendo com o diabo verde que me tornei.

E desde então todos maus alunos que saem sem permissão... – Frederico, o Professor do Banheiro, e eu, o Garoto do Bebedouro, protegemos a escola.

 

 

_____

 

Rubem Leite

Imagem retirada da internete.

Escrito entre 18 e 20 de maio de 2022.

domingo, 15 de maio de 2022

FORA DO CAMPO DE FLORES AMARELAS

Van Gogh e seu campo de girassóis

Eu e meu morro de flores amarelas

Não vejo coisas invisíveis

Vejo a realidade que corrói

Com livros combato as esparrelas. 

O quanto e quanto já foi dito "amanhece, entardece e anoitece; janeiro, fevereiro ... novembro e dezembro; tempo de chuva com calor e tempo de seca com frio; tudo que é vivo morre".

Tudo repetindo.

Nada, surgimento, vida, morte, ressurgimento, vida, morte, ressurreição...

O rio corre entre a terra até chegar a outro rio ou ao mar. A terra se move entre os oceanos.

- E o que tem isso, meu Deus?!?

- Tem que numa mesa cinco discutem se o correto é dizer negro, preto ou moreninho. E todos os cinco são bem branquinhos. É outra vez o eurobrasileiro querendo definir a sorte do afrobrasileiro.

Silêncio para olhar nos olhos.

- Tem que outra vida é corrompida pelo desafeto familiar, pelo desinteresse político-social até ser interrompida pelo traficante ou policial.

Olhos nos olhos silenciosos.

- Tem que ao dizer "Umbanda, Candomblé, Macumba, orixás" ainda se ouve "credo; tá queimado, sangue de Jesus tem poder... são do diabo, são demônios". E quando perguntados se já assistiram alguma cerimônia ou leram suas doutrinas negam. Alguns afirmam que sim, conhecem ou viram. E quando se questiona como são as cerimônias e o que dizem suas doutrinas se calam ou respondem mentiras. Tal qual boçalnarianos "e o Lula, hem?!?".

- Ééé. A Terra não é plana, mas o mundo é chato.

- Enquanto gira o planeta e circula o cotidiano a gente lê, bebe, escreve, dorme, trepa, trabalha, canta, dança, encena, pinta.

- Desses, muitos tecnisam e vegetam.

- E desses, poucos artistam em protestos:

Uma boca morta abre centímetro a centímetro.

É o globalismo capitalista investindo.

Diverte-se o pobre com sua tranqueira nova.

Ignorante ignorado caminha centímetro a centímetro para sua cova.


_____

Rubem Leite

Foto do autor: vista da janela da cozinha.

Escrito entre 12 e 15 de maio de 2022.

domingo, 8 de maio de 2022

OBSERVÂNCIAS

 "Última flor do lácio, inculta e bela [...] Amo-te, ó rude e doloroso idioma [...] Em que da voz materna ouvi: Meu filho".

(Língua Portuguesa, de Olavo Bilac).


Aos onze anos, na antevéspera do Dia das Mães, uma das estudantes chora. Não tem para quem escrever um cartão.

Sem saber o que fazer, em separado, improvisa uma conversa:

- Você acredita que a pessoa continua viva após a morte do corpo? Como alma...

- Não.

- Penso parecido. Tem hora que acredito, mas duvido em outra. Então decidi esperar o dia de minha morte para saber... Mas enquanto isso, no Dia das Mães e no Dia dos Pais falo para eles, lá no meu quarto o que gostaria de dizer-lhes. O pior que pode acontecer é nada acontecer. Mas se tiverem "vivos" falei com eles.

- O que devo fazer?

- Que tal fazer um lindo cartão; escrever tudo o que sente e domingo, assim que acordar, ler o cartão para sua mãe!?!

E o cartão foi feito com esmero.

Em casa no sábado um amigo diz:

- Tive vontade de ir na casa de minha mãe. Mas me machucou muito... É. Ela já me ajudou muito, mas também me agrediu demais. E como ela não me aceita como sou... Não vou não.

- Também não irei até minha mãe...

- Claro. Ela já morreu.

E riram. O professor com tristeza e o amigo parecendo refletir.

- Na próxima semana terei que ir perto da casa dela então passarei lá.

Domingo, na casa em frente.

- Vai tomar no cu, peste. Faz tudo errado.

Grita a mãe pra filha de quatro anos.





Em sua varanda o professor fica de cócoras, toma café com leite e observa seu jardim. Junto-me a ele e admiramos a folhagem, as flores, as aranhas em suas teias, as borboletas e beija-flores.

É no silêncio que a gente ouve. É no parar que pensamos.

Olhamos a outrora flor branca caída no chão; avançou seu processo de arrosear-se. Isso em seu de fenecer antecipado. Quem sabe se seu filosófico significado um dia, imóvel e calado, talvez possamos ver.


_____

Rubem Leite.

Fotos do autor.


Vivido e pensado nos dias 05 a 07 de maio de 2022 e trabalhado na manhã do dia seguinte.

domingo, 24 de abril de 2022

Ciranda, cirandinha. Estamos todos a cirandar.


Un corazón entero

Donde todos son rotos

Es como huir del entierro

Ser un monstruo

Entre los muertos.


Quase ninguém gosta de mim, o que me dá mais tempo de ficar com meus livros no jardim de minha casa.

Gosto bastante de passar quantas vezes puder olhando por minutos meu minúsculo jardim.

Não há nada lá fora que sobreponha o que tenho dentro.

A gravidade nos leva abaixo,

Mas sigo de pé.

Que me sustenta?

Por quê?


Um coração inteiro

Onde todos são pedaços

É como fugir do enterro

Ser um fracasso

Para os em desterro.


Cale-se

Não te ouço

Eu te falo.

Ouvir deixa louco

Histriônico estalo.


Na multidão

Só veio

Só está

Só ficará

Só sairá.


Vezes esgotado

Sempre desanimado

Nem sempre inanimado

Cem vezes admoestado.

A lutar ainda.


tormenta

venta

(des?)merecido

silêncio

imenso

vencido


Nem tudo é morte

Há o que nos tonifica

Há o que nos mortifica

Nem tudo é vida


Há muitos mares, rios e quedas d'águas agindo e reagindo às agressões humanas.

Há lagos grandes, pequenos também a sua maneira mais tranquila na luta.

Aos descrentes sobrou as poças d'águas a aguentar o sol e as pessoas.

Que sou se ainda luto com desânimo, mas com esperança?


_____

Rubem Leite

Foto do jardim do autor.

Obs.:

Fico muito contente por ter quem goste de mim. Quando falo que poucos gostam não é rechaço aos que tem afeto por mim. Muito pelo contrário. O que digo é que não sou importunando pela falsidade dos interesseiros.

Escrito e trabalhado entre 20 e 24 de abril de 2022.

domingo, 17 de abril de 2022

LECIONAR E ESCREVER ATÉ RESSUSCITAR

O muito mais novo dos irmãos era o mais velho em desânimo. Descia a rua para comprar frutas; passos lentos.

Num cruzamento percebeu indistinto um homem empurrando uma bicicleta e acompanhado de perto por um menino.

Ouviu, do outro lado do cruzamento, a voz de uma mãe:

- Pare na esquina, olha bem pros dois lados e só atravesse se não vier carro.

O pai falou baixo, só pro filho, mas alcançou o caminhante:

- Num para não e nem olhe. Cê tá comigo e tôti cuidano.

O zelo da mulher não confiou no marido. O orgulho do marido desensinou o garotinho.

O dramático dessa história não é que tenha acontecido algum acidente à criança (que bom).

O drama é as picuinhas que mantemos a todo custo, a deformação do filho e o peso no caminhante de mais uma descrença na humanidade.

Ainda caminhando até o mercado paro um instante na rua Peroba em frente a uma casa de lindas flores visível acima do muro.

- Vou te contar umas coisas...

- Huuum. --- Minha bela visão é interrompida por algum amigo.

- Vejo muita gente rindo de você, falando mal de você, aproveitando de você.

- Sei...

- E... Não faz nada?!?

- Alguma dessas pessoas me importa? Gosta de mim? Obrigado! Não gosta? Que bom; não terei que me relacionar com elas.

- Mas... Você está sendo trouxa, bobo.

- Não me incomodando, deixando-me em paz... Está bom para mim.

- Isso não te incomoda?

- O que me incomoda é não está olhando meu jardim, lendo um livro e tomando um vinho com meus cachorrinhos e gatinhos por perto. É isto que está ótimo para mim.

- É que...

- Desculpa. Mas quero comprar umas frutas para poder voltar a minha casa para brincar com meus bichinhos, ler, ver as flores e tomar um vinhozinho. Com licença.

Na minha lentidão, tão doce lentidão a permitir-me ver o que só olhava, continuo tão pequena jornada a mostrar-me grandes coisas. Mesmo não sendo todas boas.

- Oi, professor!

Três de meus estudantes me param e sorrio tranquilo para cada um deles.

- Vai ganhar muitos ovos amanhã?

Fala o do meio e o a sua direita diz:

- Ontem foi um dia triste.

- Mais triste foi o Domingo de Ramos... --- Replico.

- Por quê? --- Pergunta o da esquerda.

- Numa mesma semana a imaturidade humana é mostrada em toda sua ingratidão e servidão aos poderosos. Domingo passado conclamaram "Bendito o que vem em Nome do Senhor"; repetindo o que foi bradado dois mil anos atrás e ontem gritaram "morra, Jesus".

- Mas professor... Ninguém fez isso.

- Fazem isso várias vezes ao dia. Com negros, mulheres, LGBTQI+, pobres, doentes, presos, gordos, magros...

- Mas... Não é a mesma coisa.

- Sim, é. Ele disse que fazer isso aos pequenos é agressão a Ele, pois cada pessoa é seu templo.

O da direita nos diz:

Li que Jesus não morreu por nossos pecados, para nossa santificação. Ele não veio para nos separar do mundo. Cristo veio para ensinar que o mundo (a natureza) e a humanidade são um.

Concordo. Contente por ele está abrindo sua cabeça. O do meio continua:

- Jesus morreu porque lutou contra a direita, contra política, religião, economia que sufoca o povo; onde poucos ficam com muitos e muitos ficam com poucos.

Outro aprendiz de pensante. Gosto disso. E o terceiro acrescenta:

- Domingo será uma festa falsa, pois ainda hoje Jesus é caluniado, blasfemado, preso, torturado e morto. Não por "nossos pecados", mas porque ainda preferimos louvar os poderes no lugar de lutar com Cristo.

Não sorrio porque a Verdade não é disso. É a ilusão a nossa embriaguez. Mas me sinto bem pelos três cérebros funcionais.

A gente se despede e em silêncio cada qual caminha. Eu me aproximo do mercado, compro e volto para casa. Leio um pouco, bebo vinho e preparo um simples almoço pascal sem deixar de ver:

No centro, o morto político (Jesus); de um lado, a ciência (perguntas, dúvidas, pesquisas, estudos, conhecimento); do outro lado, vinho para comemorar cada vitória de quem luta ou sangue dos que morrem por culpa de quem cruza os braços à espera das benesses que os milhões de Cristo conquistaram para todos.

Cérebros não têm paz. Chega do nada a mãe de um dos garotos. E sua voz ébria de ilusão:

- Está escrito na Palavra, a Bíblia. Jesus morreu por nós, nossos pecados e para dar pra gente a vida eterna. Pois o que conta é nossa alma. Sarar, salvar, santificar.

Dos gritos e ofensas que me disse não há necessidade de mostrar. Já sabem ou imaginam. Respondo à mãe:

- Não há discórdia entre nossas ideias. Falei da razão histórica, não teológica. Teologia deixo para os sábios dos templos, uns são cristãos realmente; e até para seus mercantes largo-lhes as palavras. Quando luto é com meu cérebro escudado por livros e empunhando caneta.

Paro a conversa para tomarmos um café com bolo e só depois continuo:

- O Jesus histórico morreu por lutar pelo Povo; pela igualdade, dignidade, verdade e esta é ciência, não mito. E até hoje todos os verdadeiros seguidores d'Ele são mortos.

A mãe se vai. Leio um pouco mais e durmo.

Amanheceu um lindo dia nublado. Permitindo-me ver as flores em suas cores naturais, resis.

É o primeiro Domingo de Páscoa. Dia de pensar nas ações a realizar enquanto professor e escritor.

Cristo há de ressuscitar.


_____

Rubem Leite

Fotos do autor.

Escrito no correr da semana passada e hoje (17/4/22) trabalhado.

domingo, 10 de abril de 2022

CUIDO DE QUEM GOSTO. EU ME GOSTO

Quem golpeia

E o golpeado

São duas gotas de orvalho

Juntas se evaporam ao sol da manhã.

(Monje Riocam).


A noite avançava enquanto pulou a janela de meu quarto, engatinhou-se em minha cama, deitou ao meu lado roçou seu corpo no meu. O que veio depois é desnecessário dizer que me afastei de seu corpo. Não quero nada além do sossego a perder se deixasse acontecer.

O vermelho alaranjado do sol iluminou a manhã em meu quarto. Alguns segundos encatados e levanto-me.

Café forte e leite semidesnatado. A sós.

Faço o café

Silêncio é minha música

Não me interessa o muito

Basta-me as flores no pé.

Olhando para cima um céu triangular; azul com poucas nuvens. A minha frente um pé de morro, a direita um oiti e a esquerda meu telhado.

Junta-se a mim, mas ouço as maritacas.

Ontem foi outro dia sem tomar seus remédios para beber cerveja e cerveja e mais cerveja.

Em casa vomita, toma banho, come, vomita e dorme. Vou para o outro quarto.

Não para de verbear e ouço o cachorrinho brincando, os grilos e pássaros.

"Quando a gente gosta é claro que a gente cuida. Diz que me ama, mas é da boca pra fora"*.

Entro em casa, troco minhas roupas para uma conversa sobre educação, cultura e arte no outro lado de Timóteo.

- Enquanto tiver gente dormindo na rua e procurando comida no lixo vou falar de política.

- Prefiro fazer melhor. Prefiro dar assistência.

- Trabalhar duro para que a fome acabe é fundamental. Daí a assistência ser uma boa medida. Mas se assistência é caridade...

- O que tem a caridade?

- Caridade é má, mas denunciar como denuncio em meus trabalhos literários ou esclarecer a meus estudantes as injustiças são, assim creio, excelentes medidas de luta. Solidariedade sim, caridade não. Falar como as caridosas pessoas de direita é perda de tempo. É dizer-lhes que tem que pescar seu próprio peixe sem lhes dá materiais e condições para a pesca.

- E porque razão isso não é bom. A meritocraci...

- Dar assistência, ou seja, um peixe por mês... é inútil. Dar o peixe e depois de saciado ensinar a fazer o material para pescar, ensinar a pescar e ensinar a preparar o peixe... Isso sim é falar de política, pois não é a fala vazia dos caridosos. Ir aonde estão os que sofrem a desigualdade social para atuar com eles e junto deles no combate à miséria é o significado do escritor, dos artistas e professores falarem de política. Lindas palavras vãs é coisa de políticos.  Nossas falas são ações. 

Em casa, móveis quebrados e um corpo dormindo. Corpo; não alma.

Arrumo o que posso da casa.

Contenho a vontade e não piso no corpo vazio no piso.

Arrumo as malas para que vá ao amanhecer.

Em minha cabeça escuto "é essa a sua fala política?".

À voz:

- Minha fala é cuidar, ensinar, acompanhar quem caminha.



Rubem Leite

* Música Sozinho.

Escrito entre 05 e 09 de abril de 2022.

domingo, 3 de abril de 2022

A ESTRANHA MANIA DE TER FÉ NA VIDA¹

Hormiga maldita. El artista cigarra cantaba limpiando tu sufrimiento, tu cansancio. Y ahora que el artista te necesita tú le niega suministro. Pues bien. Tú comes y ti amargas con tu alimento que perdura hasta el calentamiento y… acaba. El artista hambriento lleva el mismo dolor del pueblo. Sin embargo, lo cambia a – fuerza, esperanza y lucha – cantos de encantos. Mientras tu corazón solo lamentas.

 

Na casa e terreno onde moro há aranhas, pássaros, árvores, matos, flores...

Tem uma planta que uma semana dá flor rosa e na outra, branca.


Pra que ir pra rua se a gostosura está aqui. Ficar “de cocado” espiando as flores, o vento nos galhos, as borboletas, beija-flores. Se quem ou o que é de fora:

Nas sombras do meio da névoa não vi nenhuma cara.

Vi:

Era uma vez um pastor de nome Milton Rameiro. Terrivelmente evangélico. Um belo dia foi até ele o presidente de uma nação sem noção e lhe ofereceu barras de ouro se provasse o quão terrível era:

- Universidade é para poucos. Mas não só isso. Ficarei vinte meses enterrado e sairei vivo.

Passado o tempo estipulado desenterram o pastor da educação. Este não se preocupou em respirar, beber água ou comer. Terrível era seu poder. Saiu do sepulcro gritando:

- Cadê as barras de ouro?!?

Vi:

O pum do palhaço é talco. Na cabeça da Rerreginha Senharte tem algo?

Coração de professor é carne sangrenta e do artista, alma.

O “coração de ouro” do pastor, Rameiro da Educação, é farsante. E da cultura, o secretário canastrão, Fria’alma.

Vi:

- Ai, amiga! – Beijinhos no rosto. – Estou tão angustiada...

- Que foi, amiga?

Afasta a outra para ver a cara da amiga.

- Você sabe que eu costumava abastecer minha casa de víveres no Rabbit Deenny’s desde que o dono do “grande surface” se tornou deputado defensor das famílias e da moral...

- Sei... Mas o que tem?!?

- É que agora tem em tudo quanto é lugar.

- Óóóh!

- E você sabe o que dá em tudo quanto é lugar, né?

- Sei, amiga. Pobre.

Em lágrimas:

- Não poderei mais mandar minhas serviçais fazer as compras lá.

E recebe um abraço solidário pra passar por mais essa provação.

Vi:

O homem de quem compro ração trazer-me o alimento de meus bichos e tremer de medo quando chamei a cachorrinha Iemanjá. Não se assustou com Florbela, a brava; Pessoa, o brincalhão; Plur, no seu cantinho; Neno, homenagem a Nena de Castro.

- Fala isso não! – Diz trêmulo e com a mão no peito arfante.

- Iemanjá?!?

- Não invoque o diabo.

- É só um nome mitológico. Como poderia ser Zeus, se fosse macho.

- Zeus é mito. Aquela é diabo...

Meu silêncio lhe olha.

- É que não entendo nada dessas coisas.

- Então seria bom entender, né? Conhecer para compreender. Saber para ter o que dizer.

- Sei não... Sangue de galinha degolada... Cabeça de bode...

- E o Sangue de Jesus nas missas e cultos?

- Não sei não.

- Eu sei sim.

Vi:

O frio do seu olhar congelar meu coração. A aspereza de suas palavras endurecer meu coração.

Mas o voo das borboletas, o canto do vento co’as árvores; estes fazem bem ao meu coração.

 

 

Rubem Leite

 

¹ Maria Maria, de Milton Nascimento.

 

Escrito entre 29 de março e 03 de abril, mas pensado desde muito antes disso.