domingo, 6 de novembro de 2022

MESSIAS NÃO. BARRABÁS E SEUS ELEITORES

Ao meu redor,

o pós por do sol.

À minha frente,

a chuva no vulto das árvores.

Sim ao som da chuva à frente.

Ao meu atrás,

gritos a gotejar ferida

qual água mole em pedra dura.

Não aos gritos ferinos atrás.

Ao meu redor,

a redoma do início da noite

é o que tenho.

Em 2018, ao ser confrontado através de zombarias, eu disse: "É uma pena que quatro anos não serão suficientes para o povo aprender o mal que fez ao escolher Jair Barrabás Boçalnato".

Não precisei de clarividência, pois era e ainda é clara a evidência das trevas elegidas.

Anos antes, ao Lula ser eleito por primeira vez, declarei que as pessoas haveriam de querer que em apenas quatro anos fossem corrigidos todos os problemas construídos em mais de quinhentos anos.

Dito e feito. E a prova foi o apoio ao golpe de 2016 e a eleição duas translações depois.

Lendo O Fabricante de Gorro¹: "Um homem inocente não tem porque ocultar seus pensamentos" pensei: Os inteligentes omitem seus isolamentos. Os indigentes ocutam seus ferimentos. Mente-se, omiti-se, pela indecência em todos os momentos.

Não perco tempo esperando retorno das pessoas. Elas pouco darão. A maioria está imersa nos próprios problemas. Por isso, ou não olha para os outros ou não os vê.

Digamos: a cada cento e cinquenta pessoas de nosso convívio, uma ou duas nos querem bem, três ou quatro nos querem mal ou não nos querem, e o restante nos quer, mas nem bem nem mal... E assim como são conosco nós somos com os demais. O que nos resta? Seguir o próprio caminho na maior serenidade e silêncio possíveis. Serenidade para não nos magoarmos, silêncio para não ferirmos e os dois para sentir a natureza.

O compositor Domiguinhos disse: "Traga-me um copo d'água, tenho sede e essa sede pode me matar. [...] A planta pede chuva quando quer brotar. O céu logo escurece quando vai chover". E só quero nesse momento dizer a você o que li num muro: "Você é forte. Só está cansado". Vá e Vença! O Sol renasce uma e outras vezes mais.


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Texto e fotos de Rubem Leite: vistas de minha casa, em Limoeiro-Timóteo MG.

¹ de Phlip K. Dick.

RECOMENDO:

A leitura de Sequestraram a Democracia, de Glaussim:

https://www.recantodasletras.com.br/contosdesuspense/7641748

Refletido e trabalhado entre 28/10 e 06/11 de 2022.

domingo, 23 de outubro de 2022

ENTÃO APENAS DIGO

_ ... Não fique preocupado, professor.

_ Não estou preocupado. Estou é estressado. Eu me incomodo muito mais com a mau que sou do que com o mau que os outros são.
Um segundo olhando-a nos olhos conta essa historinha¹:
- Jesus, você é bom.
- Sou não.
-É bom sim, Jesus.
- Só o Pai é bom.

Olha-me como se dissesse a mim: "você não pratica religião e fala de Deus". O que sei é "Deus e religião são totalmente diferentes". Nada iria dizer, mas ela acrescenta:
_ Ânimo! A gente pode mudar o mundo.
_ Queria dizer sobre o professorado: É uma missão mais que profissão, mas não nos veem nem como trabalhadores. Que temos o poder de mudar o mundo, mas somos impedidos de instruir a maioria dos estudantes. Que somos a elite intelectual da cidade, mas tem até quem vota no Boçalnato. Que somos respeitados e amados, mas só gostam de nós enquanto dizemos o que querem e não os fatos - seja comportamental ou acadêmico. - Pauso um, mas pouco efeito teve minha fala. Só digo então:
_ Peço licença.

Volto pra casa matutando:
Não compreendo o medo que se tem da morte. A vida divide as pessoas em classes ou grupos. "Viver é perigoso", segundo Riobaldo (Grande Sertão: Veredas) e já disseram Lau-Tse, Jorge L. Borges, Schopenhauer e...: A morte iguala a todos.
Em casa, sinto-me um pouco melhor, talvez em paz ao regar meu pequeno jardim, depois tomar banho, beber um drinque admirando a terra ainda molhada, o verde, o amarelo, o branco, o rosa e o vermelho das plantas. Botânico, biólogo, psi-cólogo/quiatra - algum cientista - explicaria a química. Poeta pode explicar o 'anima'. Todavia o meu sentir não explico. Sinto e partilho as sensações.
Cara gente que lê, encerro minhas palavras de hoje sentindo o que penso.
Sentado na cadeira, com os cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos seguram a testa. A respiração está descompassada, o estômago a revirar e a cabeça dói. Ele é todo cansaço.
O barulho ao redor diminui e ele levanta a cabeça.
Olha para quem, na sala, ninguém mais vê. Sorrindo o compasso volta à respiração, com os braços faz um ninho para as mãos servirem de travesseiro à cabeça que não mais agoniza.
Ele segura a mão de quem sempre quis e se vão juntos.
Se fosse temer algo seria: Não temo a inexistência. Tenho medo da morte. Esta é a continuidade da tragédia da, aparente, existência. Aquela é o fim da comédia humana.


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Rubem Leite.

Escrito entre os dias 18 a 23 de outubro de 2022.

¹ Marcos 10,18.

Foto do autor.

domingo, 16 de outubro de 2022

DORMIR

"Por o primeiro pé na primeira ausência de mim"*.


Dizem que Victor Hugo, ao ver uma gárgula numa igreja francesa, falou "por que não sou de pedra igual a você". Através de um de seus personagens, José Saramago disse "se o seu coração é de ferro, aproveite-o bem. O meu foi feito de carne e sangra todos os dias.



Quero ler, estou cansado. Quero escrever, estou cansado. Quero ver um filme, estou cansado.

Elogio, brinco, critico, sou mal interpretado. Faço isso e aquilo, não agrado. Fico quieto, em silêncio, sou acomodado. No trabalho meu muito lhes é pouco. Fico sem força para sequer fazer o mesmo. 

Queria dizer sobre o professorado: É uma missão mais que profissão, mas não nos veem nem como profissão. Que temos o poder de mudar o mundo, mas não conseguimos nem mudar o estudante. Que somos a elite intelectual da cidade, mas há até quem vota no Boçalnato. Que somos respeitados e amados, mas só gostam de nós enquanto dizemos o que querem e não os fatos - seja comportamental ou acadêmico.

Em casa, os gritos dos vizinhos da frente e meus cães latindo a eles... Sinto-me sem lar, lugar pra ficar nem pra ir.

Muito tempo atrás um pastor chutou um ícone da Senhora Aparecida e nestes últimos dias outros fizeram o mesmo.

Lembro que naquela ocasião Rita Lee comentou o fato dizendo que a agressão foi contra uma mulher negra. Não foi a uma estátua do homem "branco" Jesus.

E o que mudou de lá pra cá?

Não vejo nada.

Neste mesmo dia 12 de outubro de 2022 um grupo bebia cerveja na porta da basílica. Os canecos contiam a figura do Boçalnato. Um disse "deus está aqui e bebo seu sangue" enquanto sorvia um gole os demais aplaudiam.

Um devoto da Aparecida, por uma simples camisa vermelha, escapou de ser linchado refugiando-se na grande igreja.

Boçalnato disse "surgiu um clima ao conversar com três ninfetas bonitinhas" e pediu para ir a casa delas, onde havia outras quinze adolescentes. Todas estrangeiras pobres. Entenda cada um por si o que ele deu a entender. Sendo verdade, não deveria ter "surgido um clima".

- Não foi o que ele disse. - Falou uma colega professora. - Isso é colocar maldade onde não tem.

Nem lhe respondi. Penso na presidente da ONG de acolhimento dessas meninas a explicar que o presidente visitara uma ONG, não uma "casa da luz vermelha".

Mudanças, quais foram? Ou não houve?

Na noite de ontem: um vídeo de tucanos a entrar em um apartamento buscando comida. Os moradores, alegres. Nesta manhã olhei ao meu redor. Árvores, flores, canto de cigarras e pássaros, borboletas. - Soltos. - Mas, igualmente, não faltaram aves engaioladas, cães abandonados, crianças descuidadas e velhos ignorados.

A única espécie capacitada a admirar ocupa tudo, destruindo, aprisionando ao invés de apreciar.

Não sei viver. Por ignorar como não sei conviver.


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Rubem Leite.

* À Beira do Nada, de Clarice Lispector.

Foto do autor.

Escrito entre 09 e 16 de outubro de 2022.

domingo, 2 de outubro de 2022

HÁ DE VINGAR

 

Durante a semana que hoje começou plantarei mudas de jabuticabas, romãs e limão galego. E o céu nublado não é tristeza. É serenidade para refletir. Hoje pode ser um lindo dia se soubermos eleger. Alegria, venha!

Muito falei entre julho de 2018 a junho de 2019 o estranho horror que foi o Nazismo ter como principais apoiadores, diretos ou não, os profissionais da advocacia e os da saúde. E exatamente o mesmo ter acontecido no Brasil no primeiro quarto do século XXI.

Em 2022 se constata que aproximadamente trinta por cento da população continua com ideias fascistas; e a maioria desses nem sabe o que é isso...

Mudando de política para educação.

Semana passada, atipicamente, a diretora, a vice-diretora e uma das duas pedagogas estiveram ausentes. Duas por enfermidade e uma para reunião na Secretaria de Educação.

Aproveitando a sobrecarga:

- O que estão fazendo aí?

- Ah... Nada não professora.

- Raspa fora. - A professora observando que três alunas do nono ano estavam perto do botão de sinal de saída às onze da manhã. - Aqui não é para entrarem sem permissão.

As três então foram de sala em sala:

- Professor, a pedagoga falou para mandar a turma pra quadra.

Foi um caos.

No dia seguinte um professor necessitou voltar para casa ainda na segunda aula por ter adoecido. Não aguentou o descaso dos alunos. E estamos todos - os professores - indo para o mesmo estado.

"Sem luz" é o significado da palavra "a (não, sem) luno (luz)"

Disse acima "mudar de política para educação", mas a verdade é que tudo é política. O que é o comportamento estudantil senão o resultado político de desmonte da educação?

Do ponto de ônibus no bairro Limoeiro, em Timóteo à rodoviária em Coronel Fabriciano e de lá para o ponto de ônibus em Ipatinga muitas pessoas misturavam roupas de diversas religiões e Boçalnato. E nas ruas santinhos separavam a imundície humana, destacando-a e a encobrir a beleza das flores.

Uma das coisas mais amadas por mim é a bandeira do Brasil. O boçalnarismo deixou-me a sequela de, ao vê-la: nos dias que a labirintite me ataca, ter ânsias de vômito e nos outros dias sentir asco. Por Deus, que eu me cure e sinta a paz de seu verde e estrelas; que seu amarelo e em sua "ordem e progresso" retorne o amor.

Um dia depois, segunda-feira:

Observei que ainda sou esperançoso. Achava absurdo um terço da população ser "adepta" à ignorância e ao ódio. Mas constato que, de fato, metade da população é "viciada" no mal.

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Autor: Rubem Leite

Imagens: fotos do autor.

02/9/22

domingo, 25 de setembro de 2022

BRISA INSENTIDA

"Num deserto de almas também desertas uma alma especial reconhece de imediato a outra"¹.



Em vida cansei de aniversários.

Já gostei de ser lembrado

E gente em casa.


Risos temporários.

Alegrias superficiais

No oco do coração.

Na carne cardíaca

Vazios, artificiais.


Felicitações de boa fé,

Obrigado!

Felicitações de má fé,

não eram obrigados.


No momento

Silêncio, soledade,

Livros, pensamentos,

Cachorros, gatos, peixinho

Até o memento.

Quando eu morrer

Não quero velório.

Basta o enterro

Pelos coveiros.


Parentes, familiares, amigos,

Colegas acima, ao lado, abaixo.

Ninguém!


Não quero rezas,

Prantos, piadas

Elogios.

Nem se os tiverem.


Quero silêncio,

Sossego e ninguém.

Só a terra por cima,

Talvez um canteiro de flores

Mas Ninguém.


Um mês depois

Realizem o anteriormente dito

Memento

- Isso se não for por aparências.

Pra quê?

Tudo se esquece, perde-se

Até as condolências

E o tempo é em vão -

Mas se o realizarem

Seja

Em silêncio

No solitário ou soledade

De seu "órgão torácico, oco e muscular, que funciona como o motor central da circulação do sangue".²


No mesmo tempo ou outro

Realizem um almoço

- isso se quiserem; realmente quiserem -

Para comemorarem

Ou lamentarem.

Podem rir, falar, chorar...

Não estarei ali

Não estarei nem aí.


Mas num restaurante ou onde quiserem.

Desde que nunca no cemitério,

À minha sepultura.

Minha cova é minha

E de mais ninguém

E Ninguém tem que ir lá.


O que até então foi meu será seus.

Não creio haver brigas

- Nada tenho -.

Mas se disputarem seja onde queiram,

Menos no meu campo santo.


Só peço umas coisinhas:

Adotem meus bichinhos e cuidem bem deles.

E já que estou pedinte

Peço uma coisa mais:

Não vão ao meu enterro.

Se quiserem ir que vão aos seus.


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Autor: Rubem Leite.

Imagem: foto de Erika Aviles.

¹. Aqueles Dois, de Caio Fernando Abreu.

². Dicionário eletrônico Dicio.

Setembro 2022.

domingo, 11 de setembro de 2022

PROFESSOR-PROFESSA-PROFISSÃO - parte 03

ou GENTILEZA


Amou como se fosse possível

A quem prefere um fuzil.

Ouviu críticas, risos. Cruel.

De aliança sentiu-se

O vazio do furo,

Não a joia do anel.



No meu jardim está o brilho do sol.

Na escola...

- Na próxima vez que vier com aquela coisa em que se enrola vou levar pra casa pra lavar. Eu tenho máquina de lavar.

- Aah, obrigado. Mas também tenho.

- Faço questão. Acho que a minha máquina é melhor.

Meus pensamentos não são agressivos e mesmo assim prefiro me calar.

- Ah! E quando a barba. Está tão feio assim.

Meus pensamentos continuam não agressivos, mas antes de responder alguém nos interrompe nesse momento tão... agradável de cuidar da vida dos outros. Aproveito a interrupção para sair de perto. Outra colega se aproxima de mim a falar dos cidadãos de bem. Replico:

- Gostamos muito de declarar "Somos irmãos". E somos! Caim e Abel. Compreendo a mecânica, mas não a razão de vivermos para poucos terem tudo se todos poderiam ter muito.

- Discordo que sejamos Cain e Abel.

Nada respondo. Vejo! Mas o fato é: se não olhar nem se vê.

- Você, que é comunista petralha, fica dizendo essas coisas.

- Não sou comunista, socialista e ainda menos capitalista. No máximo posso dizer que sou de esquerda. Mesmo que muitas vezes me percebo um zero à esquerda. Sendo escritor procuro apresentar histórias para pensarem. Sendo professor procuro promover reflexões. Mas o número de igrejas supera em muito o número de alunos (nem digo turmas...) que tenho. O Benito professor e o Benito escritor oferecem o que pensar enquanto religiões impõem o que pensar. Creio que outros professores e escritores passam pelo mesmo problema. Mas de políticos, desconfio.

Olha-me feio, peço licença e vou pra casa.

À noite, reunião. Da Secretaria Municipal de Educação Cultura e Esporte veio três representantes. Um deles já foi professor e diretor na escola. As duas colegas acima o recebem com beijos e abraços. Logo após dizem a que vieram.

- Estamos aqui para comunicar que a Prefeitura Municipal de Timóteo não aceitará dialogar mais com o sindicato e que os professores têm duas opções. A que queremos ou outra que demitirá os professores contratados.

- Mas isso é ameaça.

- NÃO AMEAÇAMOS NINGUÉM.

- Sim, ameaçam. E ainda querem por os professores uns contra os outros; tirar-nos do foco para não questionarmos sobre os documentos comprobatórios dos gastos que afirmam terem tidos e outras coisas mais.

Viro para trás e digo a elas:

- Entendem agora porque falei de Caim e Abel.

E nada mais diz. Ao fim, volta a casa martelando:

Dizem e dizem muito que em 02 de outubro de 2022 os problemas do Brasil acabarão. Teremos ainda, só contando este ano, 31 dias em dezembro, 30 em novembro e 29 em outubro. Noventa dias dá para vingar-se destruindo muita coisa. Que sabedoria, força e coragem sejam o suficiente para atravessarmos os próximos anos.


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Rubem Leite.

Escrito entre 02 e 11 de setembro de 2922.

domingo, 4 de setembro de 2022

PROFESSOR-PROFESSA-PROFISSÃO - parte 02

ou FALO DE MIM, NÃO DE VOCÊ


Um dia ainda hei de ser silêncio.

É tão difícil dizer o que fala

Não o que me sentem pretenso

Ah, boca! Vê se te cala.


- ... se você que parecer que é jovem...

- Não gosto da juventude. - Olha-me escandalizada - Não quero ser jovem.

Queria silêncio, mas era o que não tinha nas proximidades.

- Faço e ajo como me sinto bem sem ferir ninguém. E se machuco não é intencional. É cuidar de mim... ou tentar!

- Não gosta dos jovens?!?

- O que não gosto é da estupidez de quem se acha sabido. - Transfiro meu olhar dos olhos dela para ver a platinha no pequeno vaso sem paralisar minha fala. - Quando jovem sabia de minha ignorância pela falta de vivência, mas não me era possível deixar de agir com a presunção juvenil. - Meus olhos voltam aos dela. - O que eram fome... miséria... pele preta... ser mulher... ser rico... ser intelectual... ser plebe... ser elite... Nada sabia e agia como se soubesse.

Ai, como queria silêncio. Sossego.

- Hoje sinto mais dores e mais cansaço. Pouco aprendi nesse passar de anos, mas vivi e vi muitas realidades. Minha estupidez é menor.

- Os alunos da sala... não gostam de você. Reclama. que não entendem nada que você fala. - Sorri. - Desse jeito vou removê-lo para outra escola.

- Não, não vai. Não sou seu funcionário, mas da prefeitura. E é fácil resolver esse problema. Se a turma não me quer é só ligar para a Secretaria Municipal de Educação e pedir para a próxima segunda-feira um novo professor de Português para ela.

- Calma, professor. Também não é assim. Não precisamos exagerar...

- Estou calmo. Só não faço questão de nada ou de ninguém.

Sábado e domingo.

Cansado, fraco, sonolento. A espera do tudo outra vez.

- Vamos ler em casa o livro...

- Num leio nem na prova... Acha que vou lê incasa?

Outro dia e a mesma coisa.

- Vamos começar na próxima semana a Operação Tartaruga.

- Tartaruga Ninja? - Diz uma que não sabe ouvir; apenas falar sem nunca dizer. Continuo como se não a ouvira.

- As aulas serão de meia hora, terminando na hora do recreio.

Gritaria de festejo; sem nada de compreensão.

- Desse modo serão dias letivos; menores, mas sem obrigação de reposição.

Mais gritaria vã.

- Nosso objetivo é combater o descaso da prefeitura com a Educação. Estamos lutando não só por nós, professores efetivos, mas também pelos contratados porque...

Calo-me porque não me escutam; sequer ouvem. Quando abaixam a voz o suficiente para eu poder continuar:

- Lutamos pelos contratados porque não têm a nossa estabilidade; pelo pessoal da limpeza, da merenda, por vocês...

A vozeria retorna e me calo, cansado. Quando possível:

- Lutamos pelo cumprimento do nosso piso salarial, pela infraestrutura da educação e...

Fecho minha boca por não ser ouvido.

- Faz parte da infraestrutura ter tinta para pincel, que frequentemente percebem que não tenho; melhoria nos ônibus escolares; merenda...

- Vai ter feijoada? - Fala outra incapaz sequer de escutar.

- Gente! Isso não é festa, feriado ou férias. Não é diversão. É luta...

Mais barulho.

- É luta. E mesmo quando paramos não deixamos de ensinar. Na Operação Tartaruga, numa paralisação ou numa greve estamos ensinando a se defenderem. Daqui a alguns anos estarão trabalhando e se não aprenderem terão que aceitar qualquer coisa. NUNCA ganhamos direitos. SEMPRE o conquistamos.

Mais barulhos. Calo-me cansado. Alguns rostos irritados com os colegas. É hora de mudar de sala. Onde consigo dizer para quase todos.

Em casa.

-  A família não se compra com simpatia e os "amigos" se vendem por conveniência.

Gosto dessa fala e o que digo a seguir foi mal compreendido ou não soube expressar:

- Não busco amizade de ninguém. Não sou de recusar amizade. Gosta de mim? Bom. Não gosta? Bom. Sou árvore. Não dou nada a ninguém nem tomo. Recebo sol, água. Produzo flores e frutas. Se me admiram: consomem minhas frutas, admiram minhas flores, deleitam-se com minha sombra tanto faz. Produzo por ser minha natureza. Se me desprezam não tem importância. Há outras árvores por aí para se abrigarem. Vão em paz. Estou sereno.

Ignorada minha explicação peço licença e vou pro meu quarto.

Leio no Caralivro "O aspecto mais perigoso da religião é sua tendência a glorificar o absurdo e a justificar o abominável". Dizem ser de Stilfyn Emerys.

- Estes têm feito suas reuniões dominicais e outras durante a semana para louvar e engrandecer o deus da mentira que dá testemunho de prosperidade, comprando imóveis com dinheiro vivo. E os comunistas? O que tem feito para conscientizar as pessoas? Estou preocupada!

- Companheira de luta, não sou comunista, socialista e ainda menos capitalista. No máximo posso dizer que sou de esquerda. Mesmo que muitas vezes me percebo um zero à esquerda. Sendo escritor procuro apresentar histórias para pensarem. Sendo professor procuro promover reflexões. Mas o número de igrejas supera em muito o número de alunos (nem digo turmas...) que tenho. O Benito professor e o Benito escritor oferecem o que pensar enquanto religiões impõem o que pensar. Creio que outros professores e escritores passam pelo mesmo problema. Mas de políticos, desconfio.

- Benito, eu deveria ter colocado aspas na palavra comunista, para ser mais clara, pois é assim que os extremistas da direita nos chamam. Concordo com você e creio que a arte é a forma de militância mais eficaz. Mas continuo muito preocupada.

- Irmã de luta  na verdade entendi sua fala. O que quis dizer foi que os lutadores pelo bem comum ou os que "não praticam o que é aceito/exigido" têm pouco espaço para falar. Estou desde o início do ano escolar explicando a importância de respeitar a diversidade, as religiões de matrizes africanas/indígenas e até hoje ainda falam mal dessas pessoas.

Após sua compreensão vou ao jardim. Lá concluo:


Da insignificância

Sonhos falsos

Para a cura

Arvorear-se


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Rubem Leite

Foto também do autor.

Escrito entre 20 de agosto e 04 de setembro de 2022.