domingo, 24 de julho de 2022

ESTOU NU E NINGUÉM VÊ

 

Desde sempre que existe a humanidade o número de violência (não importa a forma), a quantidade de violências é semelhante à quantidade de pessoas. E hoje é tão banal quanto antes.
A diferença é que não tínhamos acesso a internete para vê-las. E hoje as pessoas podem degustá-la.
Antônio Tabet* disse "Não existe ódio maior que o amor cristão".

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- Agora tudo é homofobia! Só porque não concordo que duas mulheres se beijam sou homofóbica?
- Sim, é! Por um motivo muito simples. Você não tem que concordar nem discordar com nada que não seja assunto seu ou que não tenha a ver com você.
- Ora essa!
- Já temos problemas demais para ficarmos atentos aos outros.
- Mas acho nojento.
- Então não beije outra mulher, uai! Essa é a única coisa que tem que fazer: cuide-se de si.
- Vamos mudar de assunto. Fico vendo os pretos dizendo que não devemos chamá-los assim.
- É. E negro nem é cor...
- Um - aponto pra mim e continuo a contagem apontando os demais -, dois, três, quatro, cinco, seis. Nenhum negro, mas seis branquelos querendo decidir como os negros devem ser tratados. Continuamos com espírito de casa grande e senzala.

E o silêncio é ferino. E a verdade é:

Qual coisa fiz ou falei que melhorou alguém? Dialoguei, escrevi, encenei peças, dou aulas. Mas o mundo não muda. A sociedade não se sacia. Minhas falam foram, são sombras na escuridão. Estou na contramão.

Quero agradecimento? Para que servem agradecimentos?
"Somos empregados inúteis. Realizamos o que tínhamos que fazer".
Não há mérito, pois fiz o que tinha que fazer e somente isso.
Se quiserem fazer-me postumamente algo então que me plantem uma sibiruna ou árvore frutífera. Cada qual tem o que cuidar em sua vida. Nada de perder seu tempo com quem quer ficar a sós e em silêncio (eu).

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Rubem Leite
Pensado e escrito entre os dias 16 e 24 de julho de 2022.
* Antônio Tabet é humorista, roteirista e empresário brasileiro.
** Foto tirada da internete. Marcha pra Jesus no Espírito Santo, ano 2022.

domingo, 17 de julho de 2022

RATANABÁ


Iria-me embora para Ratanabá

Porque aqui sou inimigo do rei

- um boçal sem igual -

Lá teria quem eu quisesse

Na casa que escolhesse

Mas como não é Brasil

Quem escolheria

Tinha que escolher-me também.

A verdade, porém,

Lá e cá

Reciprocidade é rara.


Em Ratanabá

Teria a felicidade que aqui não há

A existência seria aventura

Mas desventura está nos dois lugares

Quem crê é inconsequente

Paz só tem os dementes.


Em Ratanabá teria tudo

Seria outra civilização

Menos antiga que a Terra

Mais antiga que a humanidade


E quando eu estivesse mais triste

Mas triste de não ter jeito

Quando de noite tivesse

Vontade de me matar

Não me esqueceria

Sou inimigo do rei

- o boçal sem igual -

Tal qual aqui não teria

Quem eu queira

Quem me queira


Ratanabá não existe

Como não existe

Cérebro funcional

Na cabeça do rei:

Messias sem milagre

A zombar de quem não respira

A comemorar CPF cancelado

Principalmente dos bem mais velhos

E cujo filhos

- Todos zero

01, 02, 03, 04

E, para o rei boçal,

A menos que zero

A 05 -

Todos educados

A não se casarem

Com negros

A tirar até o último centímetro

Dos povos originários

A surrar

Os meios 'gayzinhos'


Ratanabá não existe

Tal qual Brasil pra toda gente.



Só me consola

Ter aos meus

Olhos, ouvidos, narinas, língua e pele

A fauna, os livros e a flora.

E não preciso fugir pra Ratanabá.


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Rubem Leite

O que sinto e penso não sei a quanto tempo escrevi na manhã de 17/7/2022.

Foto do autor.

domingo, 10 de julho de 2022

PROFESSOR, VIDA MANSA

 


Primeira aula:
- Professor! Por qual razão a nota do Zepe está maior que a minha?
- Eu que te pergunto o porquê...

Segunda aula:
- Por que o senhor não deixou entrar aqueles sete alunos, professor?
- Tinha pelo menos três minutos que eu já estava em sala; eles me viram e ainda assim ficaram enrolando.
- Ah!?! Sabia que um deles disse estar contente por ficar em casa e alguns riram satisfeitos?
- Não, não sabia. Mas ficaria espantado se alguns não pensassem assim. - Olho pela janela e o muro a menos de um metro é sem graça. - E satisfeito estaria por dar aulas só pra quem quer.

Terceira turma:
- Oh! O senhor não tem motivo pra tomar minha prova!
- Não?!? Você se levanta, vai conversar com o colega três mesas a frente.
- Mas eu estava só conversando. Não era nada sobre a prova.
Olho pro caboclo, não respondo nada ao que vejo.

Recreio:
O Fundeb não foi repassado e o piso salarial não foi cumprido.
Ah! E se o problema fosse apenas o salário.

Quarto horário:
- Vocês foram a direção protestar porque tomei a prova de todo mundo. A diretora discutiu comigo. Mas não, não vou dar outra oportunidade. E sabem o motivo? Foram reclamar, mas disseram a ela quantas vezes pedi silêncio? Não, não falaram. Não foram dois ou três alunos, mas sim a turma inteira que pensou "Benito brinca então a gente faz o que quer".

Última aula. Agora com uma colega:
- Vai tomar no cu, puta gorda.
A afronta foi tão grande, talvez tão inesperada que a professora beirou a um infarto.


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Rubem Leite
Junho e julho de 2022.
Foto do autor retirada de um poema em muro numa rua próxima da escola.

domingo, 26 de junho de 2022

NÃO VÊ QUEM NÃO VÊ

 

 


 

Passeando por um bosque iam mãe e filho – Cura Uínter Flordelis e Henry.

Ela carregava um Livro e uma bolsa com lanche para o piquenique. O menino, de cinco anos, choramingava reclamando por andar.

Param numa bela clareira ao pé de grandes rochas.

Ela se dedica a ler e a criança, ao brincar nas pedras, descobre a entrada de uma pequena gruta e, apesar da orientação materna, ele entra.

Com um suspiro cansado a mulher vai atrás. Uma vez dentro se depara com joias de ouro e pedras preciosas.

Uma voz soou:

“Pegue tudo que queira, mas não se esqueça do essencial. Você tem sessenta segundos...”.

Faltando dez segundos para o fim do minuto a gruta começa a estremecer e oito segundos depois ela estava fora.

 - Ó! Esqueci o menino... Mas tudo bem. Trouxe as joias e, mais importante, não me esqueci da Bíblia.

Passou-se o tempo. Uínter Flordelis perde suas posses. Por isso ela e a Legião da Religião se reúnem.

- Monstros. Monstros me perseguem. O que devo fazer?

A mãe chora e o Padre Jota Eme, admirando ainda o belo corpo da mulher, orienta:

- Você vê a eles e por isso eles veem você...

- Não... Não compreendo.

- Eles veem você porque você os vê.

Explica o Pastor A Eme. Depois dá a ela um cândido sorriso enquanto pensa: “Vou destruir todo mundo”.

- Então... Então o que devo fazer?

O Diácono Eme De Ce encerra a reunião:

- Os olhos... Pegue esta faca...

 

 

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Rubem Leite.

Escrito entre os dias 23 e 25 de junho de 2022.

Trabalhado na manhã de 26 de junho de 2022.

 

Padre Jota Eme – O padre Jean Rogers Rodrigo de Sousa, conhecido por José Maria, foi excomungado pelo Papa Francisco após rigorosa investigação coordenada pela Igreja Católica. O Pe. José Maria cometera diversos estupros a freiras e noviças. (Junho 2022).

Pastor A Eme – O pastor Arilton Moura, junto com o pastor Gilmar Santos, coordena o esquema do gabinete paralelo do MEC para “destravar por meio de propina demandas estaduais e municipais do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)”. [Mariah Aquino, no jornal Metrópolis, junho 2022].

Diácono Eme De Ce – O prefeito e o vice-prefeito de Curitiba (Rafael Greca e Eduardo Pimentel) acompanhados pela Polícia Militar, assessores e políticos afins, ladeiam o diácono Marcos Daniel de Camargo enquanto este benze armas de guerra a serem utilizada pela Polícia Civil. (Janeiro de 2022).

domingo, 19 de junho de 2022

SOMOS TODOS PULGAS

É muito bom o frio de junho. Para levantar está difícil, mais pelas incongruências do mundo do que pelo clima.

Mas me levanto.

Fazer o que se tenho que dar de comer.

Na escola, para trabalhar com o sexto ano:

- Tire cópias, por favor.

- Cópias só com autorização da pedagoga.

Fala-me uma diminuta pulga. Pulga não por nenosprezo meu ou pela alma dela. Pulga para a elite descabeçada do município.

Há dois tipos de pulgas. A pulga parasita que suga o sangue do povo; e a pulga que purga pela sua insignificância aos olhos das parasitas.


Rubem Leite

Partindo de um sonho tido na madrugada de 19 de junho de 2022.

sábado, 18 de junho de 2022

Inspirado no conto Uma Vela para Dario, de Dalton Trevisan

Por que é que quem te escravizou te deu uma Bíblia. Pensa, pensa.


Em Ipatinga, um elegante e maduro senhor começa a tossir, põe a mão direita sobre o coração, com a esquerda se apoia na parede de uma das lojas na avenida 28 de Abril e lentamente vai escorrendo-se até o chão.

Um jovem com dread nos cabelos o socorre, grita por ajuda. Como ninguém aparece o rapaz vai embora com o coração apertado e a pensar no corte no cabelo que será obrigado a fazer ao entrar pra polícia. O homem não percebe a ausência do celular.

Uma garota se aproxima para ajudar, abre-lhe a camisa para ele poder respirar enquanto os transeuntes passam. E a jovem se junta condoída à massa, pois tem que levar os documentos para registrar seu nome como candidata a vereadora. O homem não percebe a ausência do cordão de ouro.

Uma velhinha de Bíblia na mão vai até ele. Em seu desespero abre a carteira para ver o nome do homem e grita: "u hômi sichama Girvany. Alguém u cunhéci?" E atravessa a avenida a perguntar as pessoas se conhecem o caído. "Ó glória" exclama a cada negativa. O homem não percebe a ausência dos R$500,00 que estava na carteira.

- Gente! A mulher gritou "Girvany"? Eu o conheço. É meu amigo; um irmão.

O amigo se aproxima. "Girvany do céu. Que te aconteceu? Pega seu celular e chama o samu. Quando este chega acompanha o irmão até o UPA. Lá os médicos socorrem o homem, mas chegam tarde. Ninguém percebe o amigo indo embora com a bolsa cheia de livros do falecido. Só se ouve o choro de quem se vai: ooorrorrorrorrórróóó.


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Rubem Leite.

domingo, 5 de junho de 2022

ABÓBODA FLORAL

 Foi por aqui que passou para chegar.


Antes de sair via o que vivia.

O governo federal incapacitado, o judiciário submisso. O governo mineiro entrando na justiça para não pagar os professores e o judiciário, submisso. Os municípios de Ipatinga e  Timóteo negando aumentar o salário dos educadores. E este último eliminando dos ônibus os cobradores para dar aos motoristas múltiplas funções: conduzir, guiar quem entra, cobrar a passagem, ver quem sai...

O que a gente é diante do capital?

O que é gente diante do capital?

Em nossas intimidades, pelejas, muitas pelejas.

- Boa tarde, professor!

No supermercado do Limoeiro lhe diz um imenso sorriso que muito o prejudicou. Pego de surpresa não soube reagir e só devolveu o cumprimento.

Nas salas de aula, alunos, mas não estudantes.

- "A, e, o" sempre são vogais, mas "i, u" podem ser vogais ou semivogais. Semivogal é quando sua pronúncia é mais fraca. E duas vogais nunca podem estar na mesma sílaba. Para estarem na mesma sílaba tem que ser vogal e semivogal ou o contrário; formando assim ditongo. Hiato é quando "u, i" tem a força de vogais mesmo estando ao lado de outra vogal, mas em sílabas diferentes.

- Como assim, professor?

- Vejamos os exemplos: "saí e sai", "saúde e saudade". Leiam pausadamente essas palavras, prestando atenção nas pronúncias.

- Sa-í / sai /|\ sa-ú-de / sau-da-de".

- Viram que em "saí e saúde" tanto "a" quanto "í" assim como "a" e "ú" foram pronunciadas separadamente?

- Siiim.

- Pois é. Ocorreram hiatos. Quer dizer, todas elas têm força de vogais. Mas em "sai e saudade" foram pronunciadas juntas, mas o dois "a" foram ditas com bem mais força que "i, u"; isso significa que se tornaram semivogais. Ocorrendo, assim, ditongos. Consegui explicar?

- Siiiim, professor.

Passou os próximos dias fazendo perguntas e dando exercícios sobre os encontros vocálicos e eles quase sempre acertando para errarem na prova que, diga-se de passagem, foi muito fácil. Erraram mais por terem pouco ânimo de interpretar os enunciados.

Em casa, ouve as brigas dos vizinhos da frente e as dos vizinhos de trás.

Em casa, pelejas. Seu filho sempre recusando tomar seus medicamentos, bebendo bastante e até a cheirar Paracetamol desfeito a pó.

Em casa, gritos na frente, dentro e atrás. Gritos, gritos e gritos.

E foi assim que atravessou:

Abriu a válvula do botijão, girou o botão da trempe, disfarçou o cheiro espalhando inseticida no ar e saiu deixando o pai professor deitado no sofá, bem perto da cozinha.


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Rubem Leite

Foto do autor.

Escrito entre 01 e 05 de junho de 2022.